Competências mantêm-se superpostas em pactos de leniência anticorrupção

Rafael Zabaglia 26/04/2019

A Operação Lava Jato teve grave impacto nos negócios dos maiores conglomerados de infraestrutura brasileiros, mas um fator adicional ainda os afeta: incerteza jurídica. Mesmo depois de terem transigido tempos atrás com o Ministério Público Federal (MPF) para retomar negócios com o governo federal, eles não estão legalmente imunes a novas investidas por parte doutras autoridades. Isso contribui para que tais empresas tenham ficado longe do protagonismo em licitações recentes – basta ver que as últimas rodadas de concessões de aeroportos, em 2017 e março de 2019, tiveram predomínio de licitantes estrangeiros.

O controle de processos licitatórios e contratos do governo federal apresenta um conjunto intrincado de regras. No total, quatro autoridades estão investidas do poder-dever de investigar e punir quem comete atos de corrupção em nível federal – sem, contudo, estarem obrigadas legalmente a coordenar suas iniciativas. Grosso modo: (a) o MPF pode ajuizar ações penais; (b) tanto o MPF quanto a Advocacia-Geral da União (AGU), braço do Executivo, podem ajuizar ações civis; e (c) tanto o Tribunal de Contas da União (TCU) quanto a Controladoria-Geral da União (CGU), braços respectivamente do Legislativo e do Executivo, podem aplicar sanções administrativas (exemplificativamente, suspensão do direito de participar de licitações e contratar com o governo federal).

Esse desenho institucional se revela profundamente problemático quanto aos pactos de leniência no âmbito de investigações sobre corrupção sob a Lei nº 12.846/2013 (Lei da Empresa Limpa), marco legal sobre responsabilidade civil e administrativa de empresas por atos de corrupção. A lei dá à CGU legitimidade para celebrar acordos de leniência. Todavia, não há dispositivo que atribua à determinação da CGU força vinculante sobre AGU, TCU e MPF, ou que determine que eles sejam consultados sobre e aprovem as minutas de acordo. Há panorama labiríntico de competição – e não de coordenação – entre as autoridades.

O MPF fechou diversos acordos por conta própria dentro da Operação Lava Jato, dentre outras investigações. Chamou tais contratos – e assim os divulgou à imprensa – de “acordos de leniência”. O MPF afirmou sua competência com base na interpretação sistemática duma pletora de normas. Enquanto isso, AGU e TCU afirmam que não estão vinculados pelas iniciativas de MPF e CGU porque suas competências respectivas têm fulcro na Constituição.

Reconhecida a disfuncionalidade do arranjo, esforços vêm sendo feitos no sentido duma (muito necessária) cooperação voluntária. CGU e AGU editaram portaria interministerial (PI nº 2.278) no fim de 2016 com diretrizes para a elaboração e negociação conjuntas de acordos de leniência sob a Lei da Empresa Limpa. As diretrizes incluem a criação de grupo de trabalho para lidar com cada nova oferta de acordo e a exigência de que ambos o Controlador-Geral e o Advogado-Geral determinem se é ou não caso de assinar cada acordo de leniência. O primeiro pacto foi fechado em 2017 e outros cinco se seguiram – inclusive com Odebrecht e com Andrade Gutierrez, os dois em 2018. Outra conquista inovadora foi a celebração duma leniência “global” com duas agências de publicidade, com assinatura em abril de 2018 por parte de CGU e AGU, contando com a interveniência-anuência do MPF e revisão pelo TCU.

No entanto, o TCU nem sempre adota essa postura. Em 2015, editou uma instrução normativa (IN nº 74) estabelecendo que lhe cabia aprovar antecipadamente cada passo do programa de leniência em matéria anticorrupção, bem como que outras autoridades deveriam submeter ao TCU todas as minutas, contratos finais, relatórios e qualquer documentação de suporte. Essa norma foi substituída em dezembro de 2018, mas a nova instrução normativa (IN nº 83) ainda exige que outras autoridades informem o TCU sobre qualquer nova oferta de leniência e que garantam acesso a quaisquer documentos e informações pertinentes mediante requisição. Ademais, em 2018 o TCU chegou a ameaçar suspender o acordo firmado pela Odebrecht com CGU e TCU (não o fez, afinal).

MPF e AGU também parecem se manter fora de sintonia. No contexto da atual discussão sobre a licitude de uma fundação privada receber e gerir os recursos pagáveis pela Petrobras sob seu acordo com o Department of Justice e a Securities and Exchange Commission norte-americanos, a AGU pela primeira vez parece considerar a Petrobras como partícipe, e não vítima, de atos de corrupção. Segundo a AGU, o governo federal seria a verdadeira vítima e, consequentemente, o MPF não teria legitimidade para transigir com a Petrobras em seu nome.

Em suma, os desdobramentos recentes mostram que, não obstante progressos significativos nos últimos dois anos, o programa de leniência em matéria anticorrupção brasileiro ainda é ameaçado por tensões entre as diferentes autoridades – e pela falta de regras claras ordenando que elas ajam de modo coordenado.

A incerteza jurídica decorrente de ações e agendas conflitantes é prejudicial. Primeiro, pode submeter quem cometeu ilícito a uma instabilidade financeira ainda maior, dado o risco de punição adicional a despeito dos acordos – e assim reduzir sua capacidade de fazer mais negócios e pagar mais tributos. Segundo, pode levar quem cometeu ilícito a reavaliar os prós e contras de fechar acordos e colaborar com as autoridades – e assim forçar tais autoridades a tomar medidas legais, além de privá-las de fonte relevante de informações para combater a corrupção. Observar grandes empresas sangrando e autoridades brigando entre si pode ser ótimo para os jornais – é, contudo, certamente ruim para o Brasil.

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