Convênio ICMS nº 106/17 e limites da responsabilidade tributária

Por meio do Convênio ICMS nº 106, de 29 de setembro de 2017, o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), órgão formado pelos representantes das Secretarias de Fazenda de cada um dos Estados e do Distrito Federal, pretendeu disciplinar “os procedimentos de cobrança do ICMS incidente nas operações com bens e mercadorias digitais comercializados por meio de transferência eletrônica de dados” e conceder “isenção nas saídas anteriores à destinada ao consumidor final”.

No entanto, o Convênio tratou de muitos outros assuntos que não se encaixam nas definições de “procedimento” e “isenção”. Determinou, por exemplo, que o download de programas de computador e jogos eletrônicos padronizados é fato gerador do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS); que o contribuinte é o titular do site ou da plataforma eletrônica que disponibiliza o software; que o ICMS é devido à unidade federada onde estiver domiciliado o adquirente; e que os Estados podem atribuir a responsabilidade pelo recolhimento do imposto a terceiros.

São matérias disciplinadas expressamente pela Constituição Federal de 1988 ou cuja disciplina é delegada pela Constituição a lei complementar. Portanto, sem maiores dificuldades, percebe-se que o Confaz extrapolou sua competência, merecendo o Convênio ser declarado inconstitucional.

A Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom) encarregou-se de levar o assunto ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.958, na qual as diversas inconstitucionalidades formais e materiais do Convênio foram questionadas.

Não é nosso objetivo examinar cada uma delas neste texto. O foco aqui é a Cláusula quinta do Convênio, que pretendeu autorizar as unidades federadas a atribuir a responsabilidade tributária pelo recolhimento do ICMS incidente nestas operações a terceiros, incluindo neste rol, por exemplo, o “intermediador financeiro, inclusive a administradora de cartão de crédito ou de outro meio de pagamento” e “a administradora de cartão de crédito ou débito” ou a “intermediadora financeira responsável pelo câmbio, nas operações de importação”.

Inconstitucionalidades formais postas de lado, pergunta-se: fosse essa “autorização” adotada, seria juridicamente permitido atribuir responsabilidade tributária pelo ICMS ao intermediador financeiro ou responsável por operação de câmbio, inclusive administradora de cartão de crédito ou débito ou de outro meio de pagamento?

Entendemos que não, pois, nos termos do art. 128 do Código Tributário Nacional (CTN), a lei somente pode atribuir a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa que seja “vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação”, característica que não se encontra nas pessoas referidas acima. O art. 128 é norma geral que delimita os contornos possíveis de qualquer regra que estabeleça a responsabilidade tributária de terceiros e que não encontre correspondência em outras hipóteses de responsabilidade já previstas pelo próprio CTN1.

A vinculação exigida pelo art. 128 não é qualquer relação de proximidade ou de familiaridade com o negócio ou com o fato que dá origem à obrigação tributária. Deve ser tal que permita ao responsável tributário (i) conhecer a natureza do fato gerador e as características da obrigação tributária; (ii) pagar o tributo sem sacrificar seu próprio patrimônio; e (iii) isto sem exigir esforços (inclusive financeiros) maiores do que aqueles razoavelmente exigíveis de alguém que ocupa posição privilegiada perante o fato gerador.

Este seria o caso, por exemplo, do “adquirente do bem ou mercadoria digital” (outra hipótese prevista pela Cláusula quinta do Convênio), mas não dos intermediadores do pagamento realizado pelo bem ou mercadoria digital, inclusive mediante operação de câmbio.

Além disso, por tratar a Cláusula quinta do Convênio de hipóteses de responsabilidade por substituição, isto é, casos em que a responsabilidade do terceiro surge de imediato, independentemente da ocorrência de fato próprio distinto do fato gerador do tributo, o vínculo exigido pelo art. 128 do CTN deveria estar presente desde logo, no exato momento da ocorrência do fato gerador, o que não se verifica no caso dos intermediadores de pagamento, pois, quando atuam, fazem-no em momento logicamente posterior. O pagamento pelos meios indicados no Convênio é irrelevante para a verificação da ocorrência do fato gerador do ICMS.

O STF, analisando a responsabilidade tributária por substituição, já se posicionou no sentido de que “há os limites à própria instituição do dever de colaboração que asseguram o terceiro substituto contra o arbítrio do legislador. A colaboração dele exigida deve guardar respeito aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade(...)2.

Os intermediadores de pagamento atuam em decorrência de negócios e relações jurídicas distintas dos fatos geradores e da relação tributária atinentes ao ICMS. Não fazem parte da relação comercial firmada entre vendedores e consumidores. Sua obrigação de transferir recursos é dissociada da transação comercial sobrejacente. Em regra, não conhecem as características específicas de cada negócio que gera as obrigações de pagamento por eles intermediadas, não têm obrigação de saber qual tributo é devido em cada caso, nem seria razoável exigir que soubessem.

É verdade que de alguma forma poderiam obter essas informações e promover a retenção e recolhimento do ICMS, mas não sem custos e esforços muito maiores do que os razoavelmente suportados por eles no curso de seus negócios de intermediação de pagamento. Coleta de informações sobre cada uma das operações, contratação de pareceres jurídicos para conhecer a tributação específica de negócios que não são os seus, adaptação de sistemas eletrônicos, inscrição estadual e cumprimento de obrigações acessórias relativas ao ICMS são exemplos de medidas necessárias ao cumprimento da obrigação pelo responsável e cujos custos teria de suportar, injustificadamente.

É também por estes motivos que o art. 6º da Lei Complementar (LC) nº 87, de 13 de setembro de 1996, ao dispor especificamente sobre a responsabilidade pelo pagamento do ICMS por substituição, restringiu sua atribuição a “contribuinte do imposto ou a depositário a qualquer título”, pessoas de quem se espera familiaridade com a legislação e recolhimento do imposto, bem como com o cumprimento de suas obrigações acessórias, o que torna mais natural a assunção da condição de substituto tributário do ICMS.

A regra do art. 6º da LC nº 87/96 deve ser aplicada em conjunto e de forma harmônica com o art. 128 do CTN. A interpretação que harmoniza a aplicação conjunta dessas normas é aquela segundo a qual terceiros somente poderão figurar como substitutos tributários do ICMS se (i) estiverem vinculados ao fato gerador da obrigação tributária; e (ii) forem contribuintes do imposto ou depositários/armazenadores de mercadorias sujeitas ao imposto3.

Intermediadores de pagamento, além de não satisfazerem a condição de vinculação ao fato gerador, em geral não são contribuintes do ICMS, tampouco atuam como depositários ou armazenadores de mercadorias, decorrendo daí também a impossibilidade de serem alçados à condição de substitutos tributários do imposto.

Analisando situação análoga à ora examinada, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu que contraria o art. 128 do CTN a imposição de responsabilidade tributária às administradoras de cartões de crédito pelo ISS decorrente de serviços prestados a seus usuários por estabelecimentos a elas filiados4. Foi determinante para o resultado do julgamento a identificação de que o intermediador de pagamento (no caso a administradora de cartão de crédito) atua em decorrência de relação jurídica completamente dissociada das prestações de serviços que dão origem à obrigação de ISS, firmadas entre os estabelecimentos filiados e os consumidores titulares dos cartões.

O mesmo raciocínio adotado pela decisão do STJ se aplica ao ICMS, que é, assim como o ISS, tributo sobre o consumo, bem como a outros intermediadores de pagamento, que igualmente não integram as relações comerciais que dão origem aos pagamentos tributáveis. Tais transações comerciais são firmadas diretamente entre consumidores e fornecedores, geralmente por meio de sites ou plataformas de comércio eletrônico de titularidade dos fornecedores ou de terceiros.

Por fim, como dito, responsabilidade tributária é matéria reservada a lei complementar pela Constituição5, o que torna inconstitucional a Cláusula quinta do Convênio ICMS nº 106/17.

Face a todo o exposto, conclui-se que os limites à responsabilidade tributária estabelecidos pelo art. 128 do CTN, pelo art. 6º da LC nº 87/96 e pela Constituição impedem que lei atribua aos intermediadores financeiros (inclusive administradoras de cartão de crédito ou débito, intermediadores responsáveis por operações de câmbio ou quaisquer outros meios de pagamento) a responsabilidade pelo recolhimento do ICMS incidente nas operações com bens e mercadorias digitais comercializados por meio de transferência eletrônica de dados.

Portanto, caso algum dos Estados brasileiros ou o Distrito Federal façam uso da “autorização” contida na Cláusula quinta do Convênio ICMS nº 106/17 para responsabilizar intermediadores de pagamento, haverá sólida base jurídica para questionamento.

1 Há precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconhecendo a plena aplicação do art. 128 do CTN ao ICMS, exigindo-se a vinculação do responsável com o fato gerador (nesse sentido, por exemplo: REsp 931.727/RS, submetido a sistemática de recursos repetitivos - 1ª Seção, Rel. Min. Luiz Fux, DJe em 14.9.2009).
2 STF, RE nº 603.191, j. 1.8.2011, p. 5.9.2011.
3 Este é inclusive o tratamento dado pelas legislações estaduais, a exemplo de São Paulo e Rio de Janeiro, conforme art. 9º da Lei nº 6.374, de 1.3.1989, do Estado de São Paulo, e art. 18 da Lei nº 2.657, de 26.12.1996, do Estado do Rio de Janeiro.
4 STJ, Recurso Especial nº 55.346/RJ, julgado em 25.10.1995.
5 Art. 146, III, e art. 155, §2º, XII, “b” e “d”, da Constituição.

 

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