Divergências de modelo colocam em risco a MP do Saneamento Básico

A Medida Provisória nº 844, de 6 de julho de 2018 (“MP do Saneamento”), alterou o marco legal do saneamento básico no País. Há divergências sobre o melhor modelo a ser seguido. No entanto, ao contrário do que por vezes o debate apresenta, os principais entraves não estão no campo jurídico.

Com o alegado intuito de aprimorar as condições de saneamento no País e de ampliar investimentos no setor, a MP incentiva maior participação privada. Dentre outras mudanças, tenta criar um padrão regulatório válido para todo o território nacional, condiciona o acesso a recursos federais ao cumprimento de diretrizes nacionais e amplia as competências da Agência Nacional de Águas (ANA) – agora responsável por emitir, nos termos da lei, “normas de referência” sobre o assunto.

A MP tem gerado embates. Conta com apoio de confederações e de grupos empresariais, mas resistência de especialistas, associações, empresas públicas de saneamento e parte dos municípios. Houve até o “Dia Nacional contra a MP do Saneamento”, em 31 de julho, cujo objetivo foi pressionar congressistas para sua rejeição.

Quem defende a derrubada da MP argumenta que parte das alterações viola a Constituição Federal. O Partido Socialista Brasileiro (PSB), por exemplo, propôs no Supremo Tribunal Federal (STF), em 21 de agosto de 2018, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5993. Alega a ausência de urgência da MP – argumento que, segundo sólida jurisprudência do STF, é válido somente em hipóteses excepcionais –, um suposto aumento indevido de gastos e, essencialmente, a invasão da competência municipal (art. 30, I e V, da Constituição) pela centralização regulatória decorrente da ampliação das atribuições da ANA.

De fato, uma das principais polêmicas jurídicas está na ampliação de competências da agência, que passa a instituir normas de referência nacionais para a regulação da prestação do serviço público de saneamento por seus titulares e entidades reguladoras e fiscalizadoras. Como essa competência inclui matéria relativa a regulação tarifária, padronização de instrumentos negociais e contabilidade regulatória, alega-se que, na prática, a medida esvaziaria a competência de reguladores e fiscalizadores subnacionais e, especialmente, a competência efetiva dos municípios quanto à prestação de serviços, reconhecida pelo próprio STF.

Apesar disso, e independentemente do mérito da centralização proposta, é correto afirmar que, pela Constituição, cabe à União instituir diretrizes sobre saneamento. Abusos podem esbarrar no desenho constitucional, mas não se pode pressupor como inconstitucional norma que garante à União o exercício regular de sua competência. A efetiva diminuição e/ou a aniquilação da competência municipal pode e deve ser evitada; a possibilidade de criação de diretrizes gerais, não.

Embora o tópico não seja tratado na ADI, questiona-se a obrigatoriedade de chamamento público e de eventual processo licitatório para celebração de contrato de programa em hipóteses que antes eram abarcadas, diretamente, por dispensa de licitação. O impacto (negativo) que a alteração gera para as empresas estatais de saneamento é compreensível; contudo, novamente sem análise de mérito, a alteração é legalmente possível, visto ser de competência da União legislar sobre os processos de licitação e contratação.

Há críticas respeitáveis de fundo à MP. Afirma-se, por exemplo, que o novo modelo pode distorcer o regime de financiamento vigente e ampliar o fosso entre cidades ricas e pobres: não haveria incentivos de financiamento privado para regiões menos rentáveis, e isso afetaria as já atrasadas metas de universalização. Aponta-se também que a previsão de chamamento público para contratos de programa pode gerar atrasos em setor prioritário e defasado, dificultando seu desenvolvimento. Finalmente, alega-se enorme falta de cuidado com diferenças regionais, importantes tanto para a regulação quanto para a execução do serviço. É desejável que esse debate se dê ao longo do processo legislativo; não há necessidade, contudo, de lhe opor entraves jurídicos inexistentes.

A aprovação da MP também enfrenta obstáculos em sua tramitação legislativa. Devido ao período eleitoral, o Congresso Nacional funciona até outubro apenas em regime de esforço concentrado, e a única semana de funcionamento conjunto de Câmara e Senado até as eleições, que viabilizaria o funcionamento das Comissões Mistas que avaliam MPs, foi de 6 a 10 de agosto. Durante esse período, a Comissão Mista da MP do Saneamento foi formalmente instalada. No entanto, sequer houve designação de presidente, vice-presidente ou relator para avaliar o texto original, nem as numerosas emendas apresentadas ao projeto (525, a maioria voltada às competências da ANA). A ausência de funcionamento se deveu, em grande parte, à pressão feita em audiência pública realizada no mesmo dia.

Embora difícil, a conversão da MP em lei ainda não deve ser descartada. Os principais passos do debate ficarão para depois do período eleitoral, mas, dada a prorrogação automática por mais 60 dias, a MP nº 844 valerá até meados de novembro. Nada impede que, superados os obstáculos políticos, e salvo eventual decisão do STF na ADI 5993, a MP seja debatida e votada pelos plenários de Câmara e Senado em tempo hábil.

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