Os desafios da moeda digital soberana

Com o lançamento do sistema de pagamentos instantâneos PIX, o Banco Central deu passo decisivo na direção da prestação de serviços de varejo. Etapa seguinte poderá ser a criação da moeda digital soberana.

Conhecidas pelo acrônimo inglês CBDC (central bank digital currency), as moedas digitais soberanas vêm sendo tratadas como questão estratégica por governos de vários países. Estudos se encontram em diferentes estágios de evolução ao redor do mundo e também no Brasil, onde o Banco Central constituiu grupo de trabalho sobre o assunto em agosto deste ano.

Moeda digital soberana nada mais é que moeda corrente em formato digital. Mas qual a diferença entre ela e outras velhas conhecidas formas desmaterializadas de dinheiro, como a moeda escritural e a moeda eletrônica? Afinal, estas também são expressões virtuais da moeda nacional e são transacionadas por meio de dispositivos eletrônicos.

Em termos legais, a diferença é que a moeda digital soberana confere a seu titular direito de crédito diretamente contra a autoridade monetária emissora (Banco Central), ao passo que moedas escriturais e eletrônicas são obrigações da instituição financeira ou de pagamento depositária.

Isso não é novidade. Desde sempre os bancos centrais emitem moeda soberana desmaterializada, na forma de depósitos (voluntários ou compulsórios) mantidos neles pelas instituições bancárias. A novidade seria a emissão diretamente para pessoas físicas e jurídicas não bancárias. 

Disso decorrem consequências importantes. Por exemplo: o Banco Central substituiria o sistema financeiro e de pagamentos na condição de depositário das disponibilidades da população? Todos teríamos contas de moeda digital diretamente no Banco Central, sem intermediação de instituições financeiras ou de pagamento?

Essa é uma possibilidade, mas com óbvios inconvenientes econômicos e práticos sobre os quais não nos alongaremos. O caminho mais provável seria o de modelo descentralizado, em que instituições autorizadas pelo Banco Central atuariam como intermediárias. Essas instituições administrariam o relacionamento com os titulares da moeda digital e prestariam serviços como identificação e cadastramento de clientes, prevenção à lavagem de dinheiro e iniciação de transações de pagamento. A abrangência das funções do intermediário dependeria do grau de descentralização previsto no modelo a ser adotado.

Porém, para que a moeda digital soberana preserve sua característica de obrigação da autoridade emissora, a instituição intermediária deverá assumir o papel de gestora de recursos de terceiros, e não de depositária. Sua função equivaleria à das corretoras de valores na custódia de títulos e valores mobiliários de propriedade de seus clientes. Contas individualizadas em nome dos usuários finais seriam mantidas no BC. Isso também afastaria o risco de insolvência do intermediário, pois no caso de intervenção, liquidação ou falência, basta que a gestão seja transferida para outra instituição.

A emissão de moeda digital soberana impactaria as políticas monetária e creditícia. Como é sabido, depósitos bancários têm efeito multiplicador de moeda.

O dinheiro depositado por um cliente é (em parte) emprestado pelo banco a outro cliente, que por sua vez também o deposita, possibilitando novo empréstimo - e assim sucessivamente. Com a migração de depósitos para moeda digital soberana isso não seria possível, pois a instituição intermediária perderia a propriedade dos recursos e portanto não poderia dispor deles para novos empréstimos. Sob esse aspecto, a moeda digital soberana se equipara a depósito bancário com 100% de recolhimento compulsório.

Além disso, como o risco de crédito da autoridade monetária por definição é zero, muitos poderiam se sentir incentivados a migrar seus recursos de contas-correntes e de pagamento para moeda digital soberana. O risco é idêntico ao da corrida bancária clássica, mas sem o inconveniente da manutenção de grande quantidade de dinheiro em espécie e com a possibilidade de realizar a transferência comodamente de casa, a qualquer hora, por meio do computador ou do celular.

Para contrastar esses inconvenientes, alternativa seria limitar a quantidade de moeda digital soberana que pode ser mantida por cada pessoa ou convertida em determinado período. Porém soluções como essa afastam a moeda digital soberana de sua proposta inicial, que é a de ser substituta perfeita do dinheiro em espécie.

Aliás, como substituta do dinheiro físico, a moeda digital soberana deveria ser dotada de curso legal. No Brasil, apenas cédulas e moedas de real gozam de tal característica (art. 1º da Lei nº 9.069, de 29 de junho de 1995, que dispõe sobre o Plano Real). Moeda escritural e eletrônica não, pois embora elas correspondam a depósitos em real, elas são na verdade - como visto acima - créditos contra a instituição depositária. Ninguém é obrigado a aceitar créditos em pagamento de dívidas.

Não seriam poucas as dificuldades na implementação do curso legal da moeda digital. Como impor a todos os que se encontrem no território nacional - pessoas físicas de todas as classes sociais, pessoas jurídicas de qualquer porte - a obrigação de aceitar pagamento em moeda digital? Aqui também uma possível solução seria limitar a abrangência do curso forçado, por exemplo a operações comerciais de varejo com estabelecimentos a partir de determinado porte. Mais uma vez, são limitações que afastam a moeda digital soberana de seu propósito original.

Outra característica do dinheiro em espécie é a anonimidade. Em teoria nada impede que a moeda digital soberana também seja anônima - bastaria que as contas de depósito fossem identificadas por números conhecidos apenas por seus titulares. Mas é pouquíssimo provável a adoção de modelo anônimo, inclusive em função de compromissos de combate à lavagem de dinheiro e de financiamento ao terrorismo assumidos pelo Brasil perante órgãos internacionais. E por questão de coerência com as obrigações de identificação impostas pela lei aos intermediários financeiros.

Note-se que a moeda digital soberana não seria um serviço de pagamento ou arranjo de pagamento, como definido na Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013, mas sim um meio de pagamento. O Banco Central poderia, contudo, valer-se de arranjos de pagamento existentes para processar pagamentos feitos na moeda por ele emitida, além de eventualmente criar seu próprio arranjo. Arranjos existentes deveriam ser adaptados para admitirem pagamentos em moeda escritural ou eletrônica e em moeda digital soberana. O processamento de transações em moeda digital soberana não deveria ser limitado a um único arranjo, seja ele mantido por ente público ou privado.

Apesar desses e de muitos outros desafios, a moeda digital soberana poderá se tornar realidade em breve. Faz bem, portanto, o Banco Central de participar ativamente dos debates sobre o tema.

Luiz Roberto de Assis é sócio da área de Direito Bancário de Levy & Salomão Advogados

Leia o artigo no Valor Econômico

Autores L&S

Luiz Roberto de Assis

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Sócio

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