Sandbox Regulatório e o Sistema Brasileiro de Pagamentos

O crescimento exponencial no uso de instrumentos eletrônicos de pagamentos, como os cartões de crédito e débito, é uma tendência em diversos países, inclusive no Brasil. A primeira lei sobre o sistema eletrônico de pagamentos brasileiro foi editada em 2013 e regulamentada no mesmo ano por um conjunto de normas do Conselho Monetário Nacional (“CMN”) e Banco Central do Brasil (“BCB”). Tecnologias emergentes estão transformando não só o modo pelo qual fazemos pagamentos, como também a forma como esse mercado é regulado. Em um futuro próximo, devemos observar novas abordagens regulatórias baseadas em regras mais flexíveis e adaptáveis a situações específicas.

Antes de analisar as novas formas de regulação do sistema brasileiro de pagamentos, é preciso entender as regras atuais. Essas criaram os conceitos de arranjos de pagamento, instituidoras de arranjos de pagamento e instituições de pagamento. Arranjo de pagamento é definido como o conjunto de regras e procedimentos que disciplinam a prestação de certos serviços de pagamento ao público, como cartões de crédito ou serviços de transferência e remessa de recursos. Instituidora de arranjo de pagamento é a empresa responsável por criar e organizar o arranjo de pagamento e o uso da marca associada a ele. As bandeiras de cartões são o exemplo mais comum de instituidoras.

Instituições de pagamento, por sua vez, são as reais prestadoras de serviços de pagamentos. Atualmente, apenas prestadoras de ao menos um dos seguintes serviços dentro de um arranjo de pagamento estão sujeitas à regulação do BCB: (i) emissão de moeda eletrônica (entendida como recursos em reais armazenados em meio eletrônico que permitam ao usuário final realizar pagamentos), como cartões pré-pagos; (ii) emissão de instrumentos de pagamento pós-pagos, como cartões de crédito; e (iii) credenciamento.

Apenas pessoas jurídicas constituídas no Brasil podem atuar como instituições de pagamento ou instituidoras de arranjos de pagamento, mas seus sócios não precisam ser brasileiros. Diferente de instituições financeiras, as instituições de pagamento e instituidoras de arranjos com capital estrangeiro não dependem de autorização presidencial para operar no Brasil. Isso é uma vantagem considerável, uma vez que decretos autorizando essas entidades dependem de fatores políticos e a espera pode levar anos.

Em março de 2018, o BCB emitiu Circular introduzindo a regulação de subcredenciadoras, que, da mesma forma que as credenciadoras, habilitam o usuário final recebedor para a aceitação de um instrumento de pagamento (geralmente cartões). Porém, subcredenciadoras são simples intermediárias entre credenciadoras e comerciantes, e não estão sujeitas a todo o conjunto de regras que regem as instituições de pagamento. Subcredenciadoras normalmente concentram suas atividades em pequenos comerciantes que não têm acesso aos serviços de grandes credenciadoras, permitindo um aumento significativo na rede de estabelecimentos comerciais que aceitam cartões de pagamento.

Em regra, instituidoras de arranjos e instituições de pagamentos precisam obter autorização do BCB para operar, o que pode demorar alguns meses, e devem atender à legislação e regulamentação aplicáveis ao sistema brasileiro de pagamentos. Entretanto, a autorização não será necessária em alguns casos, em razão de volumes de transação reduzidos ou propósito limitado das atividades.

Precisam da autorização do BCB apenas as instituições de pagamento com valores financeiros superiores a (i) 500 milhões de reais em transações de pagamento em um período de 12 meses, ou (ii) 50 milhões de reais em recursos mantidos em conta de pagamento pré-paga. Essa autorização não é exigida para instituições de pagamento que participem apenas de arranjos de propósito limitado (como explicado no próximo parágrafo), mesmo que seu volume de transações exceda os limites acima.

Instituidoras de arranjos de pagamento também precisam de autorização do BCB para operar, exceto se (i) os arranjos forem de propósito limitado, como são aqueles que disponibilizam emissão de instrumentos de pagamento aceitos apenas em uma rede de estabelecimentos, ou destinados ao pagamento de serviços públicos específicos, ou relacionados a benefícios trabalhistas (como vale-refeição)1; ou (ii) o volume das transações for inferior a 500 milhões de reais e o número de transações for menor que 25 milhões, acumulados nos últimos 12 meses e considerando todos os participantes do arranjo.

As exceções acima são parte da agenda do BCB para promover a competição no sistema brasileiro de pagamentos e reduzir custos aos consumidores. Instituições com volumes de transação reduzidos ou propósito limitado impõem menos riscos aos objetivos regulatório-prudenciais, justificando uma abordagem proporcional, com regras mais flexíveis. Essa tática regulatória evita o surgimento de barreiras à entrada intransponíveis e previne situações paradoxais em que uma empresa depende de um capital mínimo para obter autorização, mas só consegue acumular esse capital depois de autorizada a operar.

Além disso, entrantes no mercado comumente agregam novas tecnologias aos seus produtos e serviços e impõem desafios às empresas já estabelecidas, que tendem a se ater aos métodos já existentes. Esse movimento pode forçar o desenvolvimento do mercado em favor dos consumidores. Nesse sentido, o BCB poderia lançar mão de uma estrutura que permita testes em ambiente controlado com empresas que apresentem potencial de inovação. Essa não é uma sugestão nova, mas sim algo comum alguns países, como Austrália, Inglaterra e Cingapura. Tal ambiente regulatório personalizado é geralmente denominado “sandbox regulatório”.

O sandbox regulatório ora proposto funcionaria como ambiente controlado e restrito a sociedades que submeteram pedidos de inscrição à autoridade reguladora e que foram aprovadas pela mesma. Um sandbox regulatório eficiente e focado em instituições atuantes no sistema brasileiro de pagamentos deveria utilizar ao menos três ferramentas importantes: (a) processo de autorização adaptado e ajustado para facilitar o atendimento de requisitos regulatórios e para reduzir os custos e o tempo gastos antes do início das operações; (b) orientação individual para esclarecimento de dúvidas dos participantes e explicação sobre como a autoridade interpreta e aplica certas regras; e (c) dispensa da observância de regras consideradas excessivamente onerosas, com base em uma análise caso a caso (“waiver”).

Em contrapartida, algumas medidas devem ser tomadas pelo BCB para resguardar os consumidores e gerenciar os riscos envolvidos. Primeiramente, empresas aprovadas no sandbox podem ser obrigadas a testar seus produtos apenas em consumidores que consentiram com os riscos potenciais. Em segundo, o BCB pode impor um teto para o número e valor das transações efetuadas, limitando a escala dos testes. Essas são ferramentas e salvaguardas já introduzidas pelo sandbox da Financial Conduct Authority do Reino Unido (“FCA”), o primeiro e mais conhecido sandbox regulatório para fintechs do mundo.

A Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) anunciou sua intenção de lançar um sandbox regulatório para fintechs antes do fim de 2019. Essa iniciativa tem base legal na “Medida Provisória da liberdade econômica”, de abril de 2019, que permite à CVM dispensar exigências da Lei das Sociedades Anônimas para companhias de pequeno e médio porte para facilitar o acesso ao mercado de capitais.

O BCB já demonstrou disposição para estimular novas empresas e tecnologias no sistema brasileiro de pagamentos, bem como calibrar a regulamentação existente de acordo com o escopo das atividades exercidas e o volume das transações. Seguindo essa lógica, um próximo passo coerente seria a implementação de um sandbox regulatório para agentes do sistema de pagamentos. Esse programa deveria ser integrado ao futuro sandbox da CVM, já que sociedades brasileiras também podem estar sujeitas à autoridade e às normas da CVM.

A nível global, destaca-se o trabalho do Global Financial Innovation Network (“GFIN”), que conta com 29 organizações comprometidas em apoiar a inovação financeira. GFIN pretende atuar como rede de reguladores para colaboração e troca de experiências de inovação, fornecer informações regulatórias de modo acessível para as empresas e um ambiente para teste de soluções internacionais, ou seja, algo similar a um “sanbox global”.

Embora a CVM já seja membro do GFIN, a autoridade não está envolvida no fluxo de trabalhos de testes internacionais. Acreditamos que o BCB também poderia monitorar o trabalho em progresso, porque o alinhamento com GFIN é uma forma de se beneficiar da experiência de outras autoridades. Isso é ainda mais importante para o setor de pagamentos, cada vez mais familiarizado com transações internacionais.


1 https://www.levysalomao.com.br/publications/Article/fintech-in-brazil-overview

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Autores L&S

Fabio Kupfermann Rodarte

Fabio Kupfermann Rodarte

Advogado

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