A armadilha do estoque de lucros no projeto de tributação da alta renda
O Projeto de Lei nº 1.087/2025, apresentado em março pelo governo federal, propõe alterações na legislação do Imposto de Renda para instituir, entre outros pontos, a chamada tributação mínima para pessoas físicas com altas rendas. Seu foco principal é a tributação dos lucros e dividendos, e a tributação de lucros e dividendos remetidos ao exterior.
O texto original sofreu modificações substanciais por meio de substitutivo elaborado pelo relator, deputado Arthur Lira, já aprovado pela Comissão Especial. Entre as principais alterações, destaca-se a regulamentação do chamado “estoque de lucros” acumulados até 31 de dezembro de 2025, que objetivava conferir segurança e previsibilidade ao mercado, de modo a manter o tratamento hoje vigente aos dividendos e lucros distribuídos com base nesse “estoque”.
Trata-se de tema relevante. Análise dos balanços patrimoniais das 15 principais empresas que compõem o Índice Ibovespa nos permite ter uma ideia da ordem de grandeza. No trimestre encerrado em 30 de junho deste ano, essas empresas possuíam um “estoque” agregado de lucros e reservas de lucros de aproximadamente R$ 591 bilhões. Com quase 8 milhões de sociedades limitadas e anônimas ativas no Brasil, segundo dados do Ministério do Empreendedorismo (MEMP), é razoável concluir que o estoque total é substancialmente superior.
Pela redação do substitutivo, não estariam sujeitos à nova tributação os lucros e dividendos distribuídos à pessoa física residente no Brasil ou remetidos ao exterior referentes a resultados apurados até o ano-calendário de 2025, desde que, cumulativamente: (i) a distribuição tenha sido aprovada até 31 de dezembro de 2025; e (ii) o pagamento, crédito, emprego ou entrega tenham ocorrido nos termos originalmente previstos no ato de aprovação.
O modelo proposto merece crítica em razão desses dois requisitos adicionais que, se não cumpridos, sujeitarão à tributação lucros apurados e acumulados antes da instituição da nova tributação.
Mas há ainda um problema prático relevante: a regulação do “estoque de lucros”, tal como proposta, é incompatível com o regime de pagamento de dividendos estabelecido na legislação aplicável às sociedades anônimas, tornando-se praticamente inacessível por essas sociedades que somam, também segundo dados do MEMP, cerca de 200 mil.
O art. 205, § 3º, da Lei das Sociedades Anônimas determina que os dividendos declarados devem ser pagos em até 60 dias da data da declaração, salvo se a assembleia geral fixar prazo. Em qualquer caso, devem ser pagos dentro do exercício social em que foram declarados.
Como o exercício social da imensa maioria das sociedades brasileiras coincide com o ano-calendário, na prática, quaisquer dividendos declarados por essas sociedades em 2025, independentemente do período de referência, precisariam ser pagos ainda em 2025 — antes mesmo da entrada em vigor da nova tributação ou da regra isentiva. E, como o segundo requisito exige que o pagamento ocorra “nos termos originalmente previstos no ato de aprovação”, ato este que não poderá prever o pagamento depois de encerrado o exercício conforme prevê a Lei das Sociedades Anônimas, qualquer atraso no pagamento dos dividendos poderia acarretar a perda do benefício fiscal. Ou seja, a redação do substitutivo, no contexto dessas sociedades, é inútil e inaplicável, do ponto de vista prático.
Essa distorção, que pode frustrar a própria finalidade da “regulação de estoque”, é mais um argumento para que prevaleça o bom senso: resultados apurados durante o período de isenção não deveriam ser submetidos à tributação futura, ponto final.
Em poucos meses, completaremos 30 anos da promulgação da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, que agora se pretende alterar. A isenção de tributação sobre dividendos estava intrinsecamente ligada à integração da tributação entre pessoas jurídicas e físicas. À época, essa solução foi concebida como forma de combater desvios tributários e facilitar a arrecadação.
Como os resultados anteriores à vigência da Lei nº 9.249/1995 não haviam sido tributados com a mesma carga tributária, o legislador foi cuidadoso ao restringir a isenção aos “lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996”, prevenindo distorções.
Seguindo a mesma lógica, mas em sentido inverso, a tributação da “alta renda” e das remessas ao exterior deveria incidir apenas sobre os “lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir de janeiro de 2026”. Simples assim — sem necessidade de distorcer a lógica tributária para justificar aumento de arrecadação por parte do governo federal.
Artigo publicado originalmente na Capital Aberto em 18/09/2025.