IOF e FIDCs: a volta dos que não foram

Segundo Tolstoi, as famílias felizes são todas iguais, as infelizes o são cada uma de sua própria maneira. E essa regra sobre riscos das relações humanas se aplica também a temas fiscais: quando se elevam impostos, a porta do erro é larga, a do acerto bem estreita.

Pois foi pela porta larga do erro que a legislação enveredou quando se propôs tributar pelo IOF investimentos em cotas de fundos de direitos creditórios, os chamados FIDCs, como forma de gerar receita e equilibrar o combalido orçamento público.

Talvez menos pelo que se destacou até hoje, a intenção arrecadatória, que afinal existe em algum grau para todos os tributos. Há de fato ilegalidade mais grave.

A nova tributação foi introduzida pelo Decreto nº 12.499, de 11 de junho. O normativo acrescentou o artigo 32-D ao Decreto nº 6.306, de 14 de dezembro de 2007, uma espécie de regulamento do IOF, que descreve seus vários fatos geradores e alíquotas. A nova regra estende a tributação a todas as aquisições de cotas no mercado primário, isso é, aquelas de emissão originária.

O assunto se amorteceu por algum tempo, porque reagindo à revolta de contribuintes diretamente afetados o Congresso Nacional revogou a eficácia dos decretos do Executivo que majoravam a alíquota do IOF através de seu Decreto Legislativo nº 176/2025. Mas o STF os repristinou em julgamento monocrático de 15 de julho, impugnando apenas as chamadas operações de risco sacado, e assim o tema volta à baila. Embora na sua redação original o IOF sobre FIDCs abrangeria aquisições a partir de 13 de junho, em virtude dessas hesitações nota de esclarecimento da Receita dispensa o recolhimento de tributos durante o período em que as normas estiverem suspensas. Nada além do que se poderia esperar nas circunstâncias.

Entretanto, o IOF só pode, por disposição constitucional e legal, incidir sobre títulos e valores mobiliários, segundo o artigo 153, inciso V, da Constituição Federal, o artigo 64, inciso IV, do Código Tributário Nacional e a Lei nº 8.894, de 21 de junho de 1994. O conceito de valor mobiliário é importação do direito norte-americano, sendo definido pelo artigo 2º da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976. Nos termos dessa lei, como tal se qualificam as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários.

Acontece, entretanto, que os FIDCs não se prestam a investir em valores mobiliários, segundo sua própria regência, hoje unificada em uma única Resolução da CVM, a de nº 175, de 23 de dezembro de 2022. Sua carteira, segundo o Anexo II do normativo, deve ser concentrada em direitos creditórios (artigo 44). São créditos frequentemente privados, abrangendo dívidas de pequenas, médias ou grandes empresas, que não podem ser vendidas no mercado de capitais e assim não são valores mobiliários. E se não são valores mobiliários, as cotas de FIDCs que investem neles também não podem ser.

É justamente por causa disso que os investimentos em cotas de FIDCs não podem ser tributados pelo IOF incidente sobre valores mobiliários, ao contrário do que pretendia o Decreto nº 12.499/2025, agora revigorado.

E não se pode argumentar que os créditos adquiridos podem estar representados por títulos de crédito, e assim ser tributáveis como títulos. O título tributável pelo IOF mencionado na Constituição e lei tributária é aquele também mobiliário, designação genérica adotada pela Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, que organizou o mercado de capitais. E não se confunde com os títulos de crédito, dotados da característica de incorporar o direito de que tratam no próprio documento e circular como coisas móveis, propriedade chamada de cartularidade pela doutrina jurídica. São apenas esses últimos que poderiam ser adquiridos pelos FIDCs, e mesmo assim raramente ou nunca, dada a tendência a caírem em desuso em mundo de circulação eletrônica dos créditos. Portanto, ainda nessa perspectiva, FIDCs continuam a não investir em títulos ou valores mobiliários, e, portanto, suas cotas também não têm essa caraterística.

E a tributação inconstitucional tem aqui um agravante, onera os mais pobres. Pode não ser intuitivo, mas os FIDCs são usados por administradoras de cartões de crédito (as donas das maquininhas, chamadas oficialmente de credenciadoras) para financiar antecipações a vendedores de bens e serviços, muitos deles pequenas empresas. Essas empresas aceitam cartões em pagamento e recebem os valores das suas vendas das donas das maquininhas. São operações em que o FIDC recebe recursos da credenciadora, de seus sócios ou de investidores no mercado, e com eles adquire antecipadamente os créditos dos vendedores de bens e serviços, com desconto em relação a seu valor de recebimento final. Depois, espera até o vencimento e recebe valor maior do que pagou, propiciando assim lucro aos cotistas.

Pois essa compra agora fica mais cara para os investidores, que continuarão pleiteando o mesmo retorno, em país de taxas de juros elevadas. Para atendê-los, os vendedores precisam receber porcentualmente menos ao vender seus créditos, ou seja, o desconto sobre o valor nominal será maior. Muitos desses vendedores, aliás, são pequenas empresas pouco capitalizadas, que tocam mercados nas periferias das grandes cidades brasileiras, e repassarão esse ônus nos preços.

Assim, o IOF sobre FIDCs é incidência fiscal regressiva e inflacionária, onera o consumidor e é ilegal. O que dá razão a Tolstoi: só há uma maneira de estar certo, e não foi encontrada pela tributação açodada discutida daqui.

Artigo publicado originalmente no Valor Econômico em 02/09/2025.

Autores L&S

Eduardo Salomão Neto

Eduardo Salomão Neto

Sócio

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