Legislação anticorrupção: balanço e proposta de ajuste

O balanço dos anos iniciais da chamada Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013, ou “LAC”) permite identificar a má qualidade do conjunto das regras que lhe dão corpo. Este artigo discute seus principais problemas; e sugere alterações voltadas a remediá-los.

No momento em que este artigo é ultimado, o Supremo Tribunal Federal (STF) adota decisões a respeito de processos relacionados à chamada Operação Lava Jato que poderão afetar de forma severa a política anti-corrupção do país. Discutir aspectos técnicos circunscritos dessa política como faz este artigo poderia soar, em contexto semelhante, como digressão irrelevante.

A importância dos problemas que o texto discute, no entanto, justifica-o. Eles dizem respeito a aspectos centrais da legislação anti-corrupção e de sua aplicação prática no Brasil, e sua relevância é mais que circunstancial.

O problema central discutido no presente texto é a pluralidade de autoridades dotadas de competência para apurar os mesmos fatos lesivos e aplicar as sanções correspondentes; à qual soma-se a ausência de mecanismo eficaz de cooperação e coordenação entre elas. O resultado são dois graves problemas, lados distintos da mesma moeda.

Do ponto de vista da administração pública, o desperdício de recursos escassos em afronta ao princípio constitucional da eficiência. Do ponto de vista do administrado, a falta de segurança jurídica e conclusividade.

Vítima central da descoordenação que vem marcando a aplicação da LAC é o instituto do acordo de leniência, pilar central da lei. A escolha pela justiça negocial vem sendo feita por numerosas jurisdições, e de forma crescente no Brasil. Ela é consentânea com o bom uso de recursos públicos escassos. A previsão da possibilidade de celebração de acordos de leniência trazida pela LAC foi mais uma manifestação, especialmente relevante, dessa tendência.

No entanto, afetada a atratividade dos acordos de leniência – como vem ocorrendo – é também a efetividade da própria política anti-corrupção que restará prejudicada. Assegurar que seja conclusivo um acordo celebrado com o administrado-investigado não é desejável apenas do ponto de vista da pessoa jurídica em questão, mas também do interesse público.

O Acordo de Cooperação Técnica celebrado em julho de 2020 por autoridades responsáveis pela aplicação da legislação anti-corrupção, comentado adiante neste texto, afirma-o de maneira clara, ao prever entre seus princípios centrais o da segurança jurídica, para que haja o devido incentivo à autodenúncia voluntária.

No entanto, análise atenta dos anos iniciais de aplicação da LAC revela que faltou, em vários momentos, clareza da parte das autoridades competentes quanto à importância da conclusividade dos acordos de leniência.

Mais que isto, é possível identificar que com frequência prevaleceu a visão de que a preservação de empresas que tenham incorrido em atos de corrupção não é papel da administração pública.

Trata-se de equívoco de importante relevância prática. Não deveria haver constrangimento ou hesitação em procurar preservar o regular funcionamento de pessoas jurídicas, ainda que tenham incorrido em atos de corrupção.

Com efeito, o Estado não é obrigado a celebrar acordo de leniência, e pode prosseguir a investigação; se escolher negociar, tem o dever de ser criterioso; e a prerrogativa de ser rigoroso quanto aos termos negociados.

Uma vez celebrado o acordo, no entanto, deve respeitá-lo. Quando a experiência mostra que a celebração de acordo com o Estado é seguida de novas investigações relativas aos mesmos fatos, com risco de multas e novas sanções, desaparece o incentivo para a celebração de leniência. É precisamente o que vem acontecendo.

Uma competente articulação entre as diversas autoridades encarregadas da aplicação da lei teria permitido atenuar esses problemas. O que se viu nos quatro primeiros anos de sua vigência, no entanto, foi desarticulação e, com frequência, conflito aberto entre órgãos do Estado.

Mais recentemente foram postas em marcha importantes iniciativas voltadas à articulação de ações. O exemplo mais relevante é o já citado Acordo de Cooperação Técnica que celebraram autoridades dotadas de competências de investigação, sob a coordenação da Presidência do STF. O alcance do Acordo será necessariamente limitado, no entanto, em razão da decisão do Ministério Público Federal, ator central em matéria de repressão à corrupção, de não subscrevê-lo.

Os autores são de opinião que a desarticulação e conflitos que marcaram, em vários momentos, a aplicação da legislação anti-corrupção, e o insucesso das tentativas de articulação, impõem a conclusão de que é necessária alteração legislativa. É necessário um desenho legal mais rigosso, apto a promover a atuação ordenada e eficiente do poder público nessa área tão relevante e sensível.

Este artigo aponta de forma sucinta os problemas de que padece a legislação anticorrupção para então propor medidas voltadas a remediá-los.

A precariedade do desenho legal, confirmada na prática

Desde que o texto da LAC deu-se a conhecer era possível antecipar que sua aplicação seria pantanosa em razão de dois problemas centrais. O primeiro, a pluraridade de autoridades dotadas de competência legal para investigar e punir os mesmos fatos. Faltou senso prático ao legislador – esse personagem da imaginação, evocado para simbolizar o complexo, com frequência caótico, processo de produção legislativa.

Senso prático para enxergar que o sistema não funcionaria bem e que seria fonte de choques de iniciativas simultâneas e potencialmente conflitantes. O segundo problema central é a falha da lei em articular-se com outras normas, e articular sanções aplicáveis aos mesmos fatos lesivos à administração pública.

Desenho legal: complexidade e desarticulação

Um pouco de atenção e experiência teriam sido suficientes para antever que o texto de lei afinal aprovado causaria problemas. As ineficiências e conflitos são resultado direto do próprio desenho da lei:

a) a LAC atribui competência à autoridade máxima de cada órgão ou entidade do Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário para instaurar e julgar processo administrativo para apurar responsabilidade de pessoa jurídica que possa ter praticado os atos lesivos descritos na lei;

b) a Controladoria Geral da União tem competência concorrente para fazer o mesmo;[1] tem também a prerrogativa de avocar o processo instaurado pela autoridades máximas do órgão ou entidade do Poder Executivo Federal para proceder ao exame de sua regularidade e corrigir-lhe o andamento;[2]

c) o Ministério Público também tem competência para propor ações judiciais visando a aplicação das sanções da LAC, sempre que constate omissão das autoridades competentes para promover a responsabilização administrativa;[3]

d) essas competências se sobrepõem àquelas definidas em diversas outras normas que tratam também dos ilícitos objeto da LAC e estabelecem regimes adicionais de sanções.

Essa complexidade das regras aplicáveis à persecução de atos lesivos à LAC caracteriza também aquelas aplicáveis ao caminho da solução negociada por meio do acordo de leniência.

Com efeito, a LAC prevê que o acordo poderá ser celebrado com a autoridade máxima de cada órgão,[4] ao mesmo tempo em que dispõe que a CGU é a autoridade competente para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo Federal.[5] Nesse particular, e como se verá abaixo, a experiência prática superou a lei em matéria de complexidade e desarticulação.

A inaptidão para promover solução definitiva, por meio de punição ou acordo, para determinado conjunto de atos lesivos resulta também do fato de que a LAC não se propôs a articular os numerosos dispositivos legais que sancionam condutas lesivas à administração. Eles podem resultar das leis de licitações, da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), da Lei de Defesa da Concorrência (LDC); bem como de regras gerais de responsabilidade civil contidas no Código Civil.[6]

À pluralidade de dispositivos legais aplicáveis soma-se aquela de autoridades competentes para aplicá-las. A lista é extensa. Controladoria Geral da União, Advocacia Geral da União, Ministério Público Federal, Cade; e autoridades de outros entes da federação.

Acresce que se apresentou também para atuar na aplicação da LAC o Tribunal de Contas da União, escorado em interpretação de suas competências legais que é tão elástica quanto desprovida de razoabilidade, conforme será comentado adiante.

A experiência prática

A aplicação prática da LAC nos anos iniciais de sua vigência confirmou seus problemas e superou o que era possível recear em matéria de potencial para desarticulação.[7] Houve numerosos eventos especialmente reveladores dos problemas de desarticulação:

a) embora a LAC autorize, como visto, a autoridade máxima de cada órgão a celebrar acordo de leniência e preveja que a CGU é a autoridade competente para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo Federal, durante os três anos iniciais de vigência da lei foi o MPF a única autoridade a celebrar acordos de leniência[8];

b) quando a CGU enfim pôs-se a negociar e celebrar acordos de leniência, o Tribunal de Contas da União procurou exigir que esses fossem submetidos a seu exame, antes e após sua celebração, para o que editou a Instrução Normativa 74 de 2015; essa norma previa que a CGU deverir submeter ao Tribunal informações e documentos que lhe permitissem realizar essa fiscalização;

c) a CGU não atendeu à exigência do TCU com relação a todos os acordos celebrados; em dado momento, ajuizou mandado de segurança (perante o STF) contra ato de ministro do TCU;

d) em mais de uma ocasião CGU e AGU tiveram conflitos com o MPF a propósito da competência e efeitos de acordos de leniência celebrados pelo MPF;

e) o primeiro acordo conjunto envolvendo CGU e MPF foi subsequentemente obstado no âmbito do próprio MPF.[9]

Para agravar a complexidade que caracterizou a aplicação da LAC, em alguns casos o ente lesado também pôs em marcha medidas judiciais voltadas à reparação de danos alegadamente sofridos por atos lesivos.

A Petrobras, notadamente, ingressou como parte em ações de improbidade e atua contra a extinção das respectivas ações mesmo após pedido nesse sentido pela AGU ou MPF.

Autoridades de outros entes da federação também instauraram processos administrativos de responsabilização relativos a fatos que já haviam sido objeto de acordo de leniência celebrado com autoridades federais, usando provas obtidas no contexto do acordo.

Em um caso pelo menos, foi celebrado acordo com o Ministério Público de determinada unidade da federação nos autos de ação de improbidade administrativa ao qual opôs-se outro membro do mesmo Ministério Público por ocasião da revisão do acordo pelo Tribunal de Justiça do Estado em questão.

Acordo de Cooperação Técnica: sucesso improvável

Ainda que tenham tardado a fazê-lo, alguns dos órgãos envolvidos na aplicação da LAC puseram em marcha iniciativas voltadas a suprir a ausência, nas normas legais, de mecanismos de coordenação e articulação. CGU e AGU, em particular, alinharam sua atuação, por meio da Portaria Interministerial CGU/AGU 2.278/16, depois substituída pela Portaria Conjunta 4/19. O fato de integrarem, ambos, a administração federal direta facilitou sem dúvida essa articulação.

A iniciativa mais ambiciosa foi empreendida no ano de 2020. Trata-se do Acordo de Cooperacão Técnica (ACT) celebrado em 6 de agosto de 2020 entre Ministério da Justiça e Segurança Pública, Tribunal de Contas da União, CGU, e AGU.[10]

O Acordo prevê que CGU, AGU e o MPF e, quando for o caso, a Polícia Federal, buscarão atuar de forma coordenada para negociação de acordos de leniência e, se cabível, de paralelos acordos de colaboração premiada, a fim de que se resolva, simultaneamente, a responsabilidade de pessoas físicas e jurídicas, conforme o caso, pelos ilícitos de natureza corruptiva.

Seu Preâmbulo aponta a necessidade de que

os diversos atores públicos ajam de forma coordenada e em estrita observância às suas atribuições e competências legalmente estabelecidas na matéria. Sem isso, se geram insegurança jurídica, conflitos interinstitucionais, sobreposição de atuações, insuficiência ou vácuos na atuação estatal, impunidade e desproporcionalidade na punição das pessoas físicas e jurídicas. Enfim, não se garante a justa prevenção e combate à corrupção.

A necessidade de conferir a acordos de leniência celebrados nos termos da LAC conclusividade e segurança jurídica está refletida em diversas das disposições do ACT. A Seção dedicada aos Princípios Específicos aplicáveis aos acordos da Lei 12.846, de 2013 inclui aqueles da preservação da empresa e dos empregos; e o da segurança jurídica, para que haja o devido incentivo à autodenúncia voluntária.

O ACT identifica e reconhece o grave inconveniente que deriva do risco de sanções sucessivas relacionadas aos mesmos fatos; e da falta de conclusividade. É o que se lê na mesma seção decidada a Princípios Específicos:

a) da inaplicabilidade pelas Signatárias do ACT de sanções adicionais àquelas aplicadas ao colaborador no acordo de leniência, com fundamento nos fatos admitidos e nas provas diretas ou derivadas do acordo de leniência, com as consequentes restrições ao compartilhamento de provas com outros órgãos sem a garantia de não utilização em face do colaborador que as apresentou.

b) do non bis in idem, de modo que a celebração do acordo de leniência suspende a aplicação de sanções pelas Signatárias do ACT em relação ao objeto do acordo, extinguindo-se a pretensão punitiva com o cumprimento integral do acordo, bem como admitindo-se a possibilidade de compensação entre valores e rubricas da mesma natureza jurídica e relacionados aos mesmos ilícitos sancionados nas diversas esferas de responsabilização.

O Acordo oferece exemplo raro de reconhecimento, ainda que indireto, do caráter insatisfatório da atuação do Estado. A recusa do MPF em aderir ao ACT comprometeu, no entanto, seu potencial para obviar a desarticulação e dispersão de iniciativas que vem marcando a aplicação da legislação anti-corrupção.

Entre as razões conhecidas para essa decisão está o fato de a competência para negociar e celebrar acordos de leniência ter sido conferida pelo ACT, de forma conjunta, a CGU e AGU – mas não ao MPF.[11]

A (in)conveniência de participação do MPF foi objeto da Nota Técnica nº 2/2020 da Comissão Permanente de Assessoramento para Acordos de Leniência e Colaboração Premiada, da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão (Combate à Corrupção) do MPF.

A Nota Técnica afirma que as premissas e disposições do ACT não atendem ao interesse público primário que deve reger a atuação do Parquet, tampouco à Constituição da República e à legislação anticorrupção. Acrescentou que a modelagem de cooperação interinstitucional limita inconstitucionalmente a atuação cível do Parquet Federal no enfrentamento da corrupção.[12]

Dado o papel central do MPF em matéria de investigação penal, sua ausência do sistema de atuação coordenada que é o objeto do ACT limita necessariamente os resultados que poderão ser alcançados em termos de articulação, conclusividade e segurança jurídica. O reflexo, no que diz respeito aos acordos de leniência, são tão previsíveis quanto indesejáveis.

A perspectiva de que um acordo não represente solução definitiva para quem decide cooperar aumenta significativamente o ônus de decidir iniciar uma negociação com as autoridades. A generalização dessa percepção nos agentes econômicos privados retirará ainda mais os incentivos à colaboração, pois o risco de que outros tomem a dianteira no processo diminui, ou desaparece.

Alterações legislativas necessárias

O ano de 2020 e o ACT poderiam ter marcado a resolução dos problemas de articulação aqui apontados, que infirmam a política anti-corrupção em geral, e o instituto da leniência em particular. Não será o caso, e iniciativas descoordenadas, quando não os embates diretos entre as diferentes autoridades que ocorreram no passado, se repetirão.

Para obviar os problemas discutidos e com isso emprestar ao instituto do acordo de leniência a utilidade e relevância que pode ter, mudanças de duas naturezas impõem-se. A primeira diz respeito a competências e articulação dos agentes públicos dotados de atribuições nessa matéria.

As normas vigentes precisam ser alteradas de forma a garantir segurança jurídica à celebração dos acordos; os acordos deverão consubstanciar de forma definitiva o conjunto de responsabilidades e obrigações de quem dispôs-se a colaborar, sem o risco de novos questionamentos e imposição de exigências adicionais.

Não se trata de abrandar exigências, mas de assegurar que tenham caráter definitivo. A segunda mudança diz respeito à articulação dos dispositivos legais aplicáveis, de forma a evitar o bis in idem.

Competências

O ACT partiu de diagnóstico correto e aponta soluções que precisam ser consolidadas em lei[13], sem o quê estarão sujeitas às prioridades, idiossincrasias e mesmo pressões sob os quais operam as autoridades relevantes a cada momento.

As mudanças necessárias podem ser sistematizadas da forma comentada a seguir.

Instância única. A principal alteração consiste em criar instância única de negociação do acordo na esfera cível e administrativa. Essa instância deverá incluir CGU, AGU e MPF. As autoridades em questão deverão coordenar-se e desenvolver procedimentos conjuntos. Adiante serão comentadas dificuldades para a implementação desse desenho – que no entanto seria fundamental adotar.

Atuação conjunta nesses moldes não seria de fácil implementação, está claro. A autonomia e independência são pilares da atuação do MPF, pelos quais os membros da instituição zelam com grande empenho. A eventual previsão legal de que deveriam atuar em conjunto com CGU e AGU tende a ser percebida como diminuição de suas prerrogativas.

A prática, no entanto, já traz exemplos importantes de atuação conjunta exitosa, como no caso de acordos de leniência celebrados com o Cade e acordos de leniência cclebrados ao lado de AGU/CGU no âmbito da LAC.

A autonomia e independência do Ministério Público não podem ser perseguidos de forma que inviabilize a consecução de outros bens jurídicos como a segurança jurídica e a vedação ao bis in idem; mas sim conciliar-se com eles. É o que exige o princípio da eficiência de que trata o artigo 37 da Constituição Federal.

Essa perspectiva não deveria ser objeto de objeção apriorística por parte do MPF. Sempre lhe será possível discordar da celebração de determinado acordo – e prosseguir com a investigação cabível.

Papel do TCU. O TCU não deveria integrar essa instância única. Ao editar sua polêmica IN 74/2015, que impunha à CGU sua análise prévia de acordos de leniência, o Tribunal baseou sua atuação em sua ampla competência constitucional de controle.

O foco dessa competência é a fiscalização contábil, financeira e orçamentária; ela não deveria ser compreendida de forma tão extensiva a ponto de permitir o controle do exercício do direito sancionador pelos órgãos legalmente criados para tanto; não deveria autorizar a corte de contas a atuar pari passu nas mais diversas frentes de atuação da administração pública.

Não é compatível com o modelo constitucional de controle externo o TCU tornar-se instância de revisão de todo e qualquer ato de sanção ou regulação praticado por órgãos públicosA IN 83/2018, de resto, corretamente já não confere ao Tribunal esse papel de controle prévio.

Mas é preciso dar um passo adicional para prever que não estarão sujeitas às sanções passíveis de aplicação pelo TCU as pessoas jurídicas que firmarem acordo de leniência no âmbito da LAC. Admitir o contrário – como ocorre hoje – não faz qualquer sentido do ponto de vista da segurança jurídica e da eficiência de que trata a Constituição Federal.

Vinculação de outros entes da federação. Toda vez que os fatos disserem respeito ao emprego de recursos federais, a eventual celebração de acordo de leniência por autoridades federais deveria vincular também as autoridades do outro ente da federação afetado pela prática.

Trata-se de sugestão que encontrará resistência, não há dúvida. Mas que é indispensável para evitar a eternização de atividades de investigação relacionadas aos mesmos fatos, bem como o consequente risco de bis in idem.

Essa sugestão embute uma presunção, que seria reconhecida e aceita por todas as autoridades relevantes, de que os agentes públicos na esfera federal estarão a perseguir o melhor interesse público relativo ao assunto em questão.

Colaboração premiada. Restaria intocada a competência do MPF para negociar acordos de colaboração premiada com pessoas físicas no âmbito penal. O MPF é o titular da ação penal e as demais autoridades não têm competência nessa matéria.

Ademais, a iniciativa de um indivíduo de buscar acordo dessa natureza não poderia ser limitada pela exigência de que o acordo alcançasse também a pessoa jurídica para a qual trabalhava – tanto na perspectiva do direito de defesa, quanto da própria efetividade do instituto da colaboração.

Isso não afasta o interesse do MPF em negociar também com as empresas, como demonstram os inúmeros acordos cíveis dos quais participou. A colaboração da empresa com frequência permite obter provas e reparação que não teriam como ser alcançadas por meio de acordos com pessoas físicas.

Papel da polícia. O que aprimoraria o instituto da colaboração, na linha dos objetivos discutidos neste artigo, é manter essa competência apenas com o Ministério Público e retirar a previsão legal de que possa ser negociado também por delegados de polícia. Há vários inconvenientes nisso. A dualidade de balcões leva a um potencial desalinhamento e a conflitos entre as autoridades envolvidas na persecução penal.

Ademais, cria brechas para que o indivíduo busque fechar um acordo oferecendo o mínimo possível, pois se não tiver sucesso num balcão pode tentar noutro. Por fim, as autoridades policiais, diretamente vinculadas ao chefe do Poder Executivo, não gozam da mesma autonomia institucional do Ministério Público. Do ponto de vista jurídico, ainda, quem deveria ter poderes para transacionar sobre a ação penal é o seu titular – o Ministério Público e não o delegado.

Sistematização das sanções aplicáveis

Ao lado da organização institucional dos órgãos de repressão, é preciso também proceder à sistematização das diversas leis que se sobrepõem e criam múltiplas sanções às condutas objeto da LAC.

Não há como conciliar com a vedação ao bis in idem a possibilidade de que uma mesma conduta seja objeto de sanções equivalentes previstas na LAC, na LIA, nas diversas leis de licitações e de controle externo, além da Lei de Defesa da Concorrência (LDC), neste caso na hipótese de cartéis em licitação.

Não se sustenta, nesse particular, o argumento de que essas múltiplas sanções justificam-se porque as distintas leis protegeriam distintos bens jurídicos: o objetivo de todas essas normas é a proteção do patrimônio público e da moralidade administrativa.

As leis referidas abrangem diversos processos, condutas e agentes. Quando ocorre sobreposição de sanções, não é porque existam bens jurídicos distintos a proteger, mas sim porque terá faltado competência e tratamento sistemático por parte do legislador.

Mesmo em relação à LAC e à LDC, identificar bens jurídicos distintos é um erro. Fazê-lo funda-se na ideia de que a LDC protegeria o funcionamento da dinâmica do mercado.

Mas nesse ponto os focos de proteção das duas leis confundem-se, não há como distingui-los de forma consistente. No contexto de uma licitação, o interesse da administração objeto de proteção da LAC é afetado pelo cartel em razão do falseamento da competitividade do certame; a conduta ilícita prejudica o funcionamento adequado dos mecanismos de mercado e com isso atinge a possibilidade de o órgão público obter a melhor proposta.

A sistematização que aqui se propõe deveria, portanto, abranger também as sanções da LDC que punem condutas objeto da LAC. E, como dito acima, deve abranger as sanções previstas na legislação que rege a atuação do TCU.

Conclusão

Nada autoriza otimismo com relação à implementação das alterações legais discutidas no presente texto. A principal razão para tanto é que elas exigiriam desprendimento de alguns dos agentes públicos atualmente dotados de competências legais nessa matéria; exigiriam, em última instância, abrir mão de poder.

O mais provável é que a desarticulação e ineficiência que têm marcado a aplicação da legislação anti-corrupção no Brasil se perenizem. Tende a ser constatada com clareza cada vez maior a baixa atratividade da solução negociada para passivos relacionados a corrupção de agentes públicos. É razoável supor que ela será acentuada pela revisão, pelos tribunais superiores, de condenações impostas a reus em matéria anti-corrupção.

É possível, provável mesmo, que volte a predominar no Brasil, em matéria de ilícitos contra a administração pública, o padrão histórico de litígios que se prolongam indefinidamente.

[1] Artigo 8º.

[2] Artigo 8º, § 2º. O Decreto 8.420/15 que regulamenta a LAC prevê, sobre essa prerrogativa de avocação, que ela poderá ocorrer, dentre outras hipóteses, quando inexistirem condições objetivas para a realização da investigação no órgão ou entidade de origem ou ainda diante da complexidade, relevância e repercussão da matéria, dentre outras hipóteses (artigo 13).

[3] Artigo 20.

[4] Artigo 16.

[5] Artigo 16, § 10.

[6] Com relação às leis de licitações apenas, a LAC contém a previsão (artigo 17) de que a administração pública poderá também celebrar acordo de leniência para lidar com as respectivas sanções. Mais recentemente, o artigo 6º da Lei 13.964, de 2019, afastou a vedação a transação em ações fundadas na LIA.

[7] Relato criterioso dessa evolução é feito por Raquel de Mattos Pimenta em seu importante livro A Construção dos Acordos de Leniência da Lei Anticorrupção.

[8] Foi determinante para isso o fato de a entrada em vigor da LAC ter coincidido com os estágios iniciais da Operação Lava-Jato.

[9] O acordo de leniência com a SBM começou a ser negociado em 2015. Um primeiro acordo foi assinado e divulgado em julho de 2016, porém acabou por não ser homologado no âmbito do MPF. Após nova rodada de negociação, a empresa assinou acordo com a CGU e a AGU em julho de 2018. Em setembro de 2018 celebrou acordo com o MPF.

[10] Acordo de Cooperacão Técnica em matéria de combate à corrupção no Brasil, especialmente em relação aos acordos de leniência da Lei no. 12.846, de 2013

[11] Seção do ACT relativa a ações operacionais: Visando a incrementar-se a segurança jurídica e o trabalho integrado e coordenado das instituicoes, a CGU e a AGU conduzirão a negociação e a celebração dos acordos de leniência nos termos da Lei 12.846, de 2013, bem como, quando algum ilícito revelado na negociação envolver fatos sujeitos à jurisdição do Tribunal de Contas da União, lhe encaminarão informações necessárias e suficientes para a estimação dos danos decorrentes de tais fatos.

[12] A Nota aponta também o fato de que teria sido preciso assegurar a participação, na concertação buscada pelo ACT, também do Banco Central do Brasil, CVM e CADE. Como instrumento superior de coordenação entre instituições a Nota Técnica aponta a proposta de Compromisso de Cooperação Interinstitucional, proposto pela mesma Comissão Permanente de Assessoramento em 2019.

[13] Antes do ACT, a Medida Provisória 703/2015, a final não convertida em lei, também refletia o objetivo de alinhar a atuação de diferentes autoridades.

Link para o texto no JOTA.

Image: Kanchanachitkhamma 

Autores L&S

Alexandre Ditzel Faraco

Alexandre Ditzel Faraco

Sócio
Bolívar Moura Rocha

Bolívar Moura Rocha

Sócio

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