Vantagem auferida e a nova guinada do CADE

Pela primeira vez na história do CADE, a “vantagem auferida” pelo infrator é defendida pela maioria do Tribunal como critério primário para calcular o valor mínimo da multa a ser imposta em casos de cartéis ou outras práticas anticompetitivas. Para a maioria dos Conselheiros, o percentual de 20% estabelecido no Art. 37, inciso I, da Lei nº 12.529/2011 (Lei de Concorrência) não deve ser interpretado como um teto para calcular multas com base nesse critério. Para que a multa tenha efeito dissuasório, especialmente para reprimir cartéis de longa duração, precisa exceder os ganhos obtidos com o ilícito, mesmo que, para tanto, a multa extrapole o limite de 20% até então observado na jurisprudência do CADE.

Este é o posicionamento atual de quatro de seis Conselheiros do CADE (i.e., Lenisa Prado, Luis Braido, Paula Farani e Sérgio Ravagnani). Apenas dois Conselheiros atualmente defendem manter os precedentes do CADE com relação ao tema (i.e., Luiz Hoffmann e o novo Presidente do CADE, Alexandre Macedo). A sétima cadeira do Tribunal deve ser preenchida em breve.

Os desdobramentos de um provável aumento das multas aplicadas pelo CADE devem ser acompanhados de perto pelas empresas que aqui atuam, especialmente pelas que estejam negociando ou considerando negociar Acordos de Leniência e de Termos de Cessação de Conduta (TCC) com a Superintendência Geral do CADE. A incerteza sobre qual será a base de cálculo da multa a ser imposta pelo Tribunal do CADE ao final do processo, pode, inclusive, aumentar a margem de manobra para empresas negociarem descontos maiores em sede de TCC, o que diminuiria o efeito dissuasório pretendido.

De acordo com o Art. 37, inciso I, da Lei de Concorrência, a prática de cartel ou outra infração da ordem econômica sujeita a empresa à multa de 0,1% a 20% “do valor do faturamento bruto da empresa, grupo ou conglomerado obtido, no último exercício anterior à instauração do processo administrativo, no ramo de atividade empresarial em que ocorreu a infração, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação”.

Na prática, desde que a Lei de Concorrência entrou em vigor, a maioria do Tribunal do CADE definiu multas concorrenciais como um percentual de até 20% das vendas da empresa no produto afetado e interpretou esses 20% como o teto da multa. Durante 2015-2016 os votos contrários foram dos ex-Conselheiros João Paulo Resende, que muitas vezes propôs a adoção de um percentual fixo de 10% a ser aplicado às vendas ocorridas durante o período de duração do cartel para calcular o sobrepreço, e Cristiane Alkmin, que aplicou metodologias diferentes para estimar os ganhos do cartel, dependendo das características do caso em questão.

Dois casos julgados pelo Tribunal do CADE dia 18 de agosto de 2021 ilustram este debate. Na investigação de cartel no mercado de uniformes e material escolar (Ato de Concentração nº 08700.008612/2012-15), a Conselheira Relatora Paula Farani adotou a vantagem auferida como critério para aplicar a multa contra a Capricórnio S.A. A Conselheira definiu o sobrepreço neste caso como 20% sobre o valor de todos os contratos adjudicados e executados pelas empresas participantes do cartel e contratados pela Administração Pública. Segundo a Conselheira, o percentual de 20% é uma presunção relativa baseada em um consenso internacional referente ao sobrepreço médio gerado pelos cartéis . A maioria dos Conselheiros seguiu o entendimento da Conselheira Farani.

O percentual de 20% do valor dos contratos adjudicados nas licitações afetadas pelo cartel também foi utilizado pela maioria dos Conselheiros na decisão sobre o cartel de material escolar e de escritório para calcular a multa mínima aplicável (Ato de Concentração nº 8700.004455/2016-94). Neste caso, o Conselheiro Ravagnani discordou do Conselheiro Relator Luiz Hoffmann, o qual adotou a metodologia tradicional do CADE sobre multas de cartel com base no faturamento bruto. De acordo com o Conselheiro Ravagnani, que foi acompanhado pela maioria do Tribunal, "é dever da autoridade antitruste fazer esforços para estimar o valor da vantagem auferida pelo infrator, critério escolhido pelo legislador como o valor mínimo da multa em qualquer situação". Nas vezes em que o valor da multa proposta pelo Conselheiro Hoffmann era inferior à vantagem auferida estimada pelo Conselheiro Ravagnani, a maioria dos Conselheiros decidiu aplicar a multa mais elevada seguindo a metodologia de Ravagnani.

A viabilidade e correção da adoção da vantagem auferida como critério primário para estabelecer as multas mínimas de infrações contra a ordem econômica tem gerado discussões acaloradas no Tribunal do CADE. Por um lado, os Conselheiros que defendem a manutenção dos precedentes manifestam preocupação com a judicialização e até anulação das decisões causadas pela adoção de um critério de multa mais subjetivo. Isto porque o cálculo da vantagem auferida é de alta complexidade: diferentes métodos econométricos produzem resultados diferentes, é muito difícil definir o but-for-price (i.e., o preço competitivo), e raramente há provas confiáveis disponíveis para fundamentar tal apuração. Para o Conselheiro Hoffmann e o Presidente Alexandre Barreto, a adoção de um percentual é arbitrária e não torna o critério objetivo. Há também a preocupação com a insegurança jurídica e o impacto negativo geral na persecução de cartéis e na negociação de Acordos de Leniência e de TCC.

Por outro lado, os Conselheiros que argumentam que as decisões do CADE devem evoluir para considerar de modo mais efetivo a vantagem auferida acreditam que este critério pode ser objetivo (e.g., 20% do valor do contrato) e aplicado a múltiplos casos de cartel. A vantagem auferida também aumentaria o efeito dissuasório e punitivo das multas, e a preocupação com a judicialização não seria válida, pois o critério, embora mais subjetivo, também é um critério legal e o Poder Judiciário não se posicionou sobre nenhum dos critérios estabelecidos na Lei de Concorrência até o momento.

O caminho a ser trilhado pelo CADE em relação à interpretação do Art. 37, inciso I, poderá ainda sofrer outros desvios até fevereiro de 2022, quando o mandato da Conselheira Paula Farani terminará e quando provavelmente um novo Conselheiro já terá ocupado a atual cadeira vacante .

Argumenta-se que a probabilidade de detectar cartéis deveria ser a maior preocupação do órgão, e que o aumento das multas não aumentará o efeito dissuasório da Lei de Concorrência. Tendo em vista a recente estagnação do programa de leniência, o aumento da detecção de infrações econômicas depende, por exemplo, da evolução de ferramentas alternativas, tais como o software Cérebro, cuja função é identificar padrões de comportamento suspeitos em licitação. Outro caminho para aumentar o efeito dissuasório das penalidades contra infrações à ordem econômica seria fomentar as ações civis de reparação de danos concorrenciais, mas trata-se de alternativa em alguma medida controvertida e complexa, haja vista o quadro processual e normativo do Brasil.

De todo modo, se a vantagem auferida for de fato escolhida pelo Tribunal do CADE como critério primário para as multas concorrenciais, o efeito dissuasório pretendido dificilmente será alcançado, dado o provável aumento da judicialização das decisões do CADE. É possível até que o efeito alcançado seja contrário ao pretendido, ou seja, que a adoção da vantagem auferida fragilize o combate às infrações à ordem econômica. Isso porque um conceito de multa fluido pode dissuadir empresas e pessoas físicas a negociarem leniência plus e TCCs junto ao CADE, resultando em investigações mais longas e custosas. É até razoável pensar que um enfraquecimento do programa de leniência do CADE nesse contexto poderia ter consequências perversas inclusive para as ações civis de reparação de dano concorrencial, devido à grande dependência do enforcement privado em relação ao enforcement público no Brasil.

De acordo com a nova Lei do Ambiente de Negócios (Lei nº 14.195/2021), sancionada em 26 de agosto de 2021, é dever da Administração Pública, na aplicação de sanções contra a atividade econômica privada, "aplicar sanções baseadas em critérios subjetivos ou termos abstratos somente quando estes forem propriamente regulamentados por meio de critérios claros, objetivos e previsíveis". Tendo em vista que este dispositivo já está em vigor, a nova maioria do Tribunal enfrentará ainda mais desafios no caminho para adotar um critério baseado na vantagem auferida.

1 Ramo de atividade pode ser mais amplo do que o produto afetado pela infração. Por exemplo, se um fabricante de autopeças participou de um cartel no mercado de freios por 10 anos, a multa deveria ser calculada com base nas vendas de todas as autopeças fabricadas por tal empresa no ano anterior à instauração do processo administrativo. Todavia, as decisões do CADE nos cartéis em autopeças têm, na prática, considerado apenas as peças afetadas pelo ilícito na aplicação da multa.

2 Ver OECD “Report On The Nature And Impact Of Hard Core Cartels And Sanctions Against Cartels Under National Competition Laws” (2002),“Quantifying antitrust damages” (2009, p. 88-90), e OECD “OECD Hard Core Cartels: Third report on the implementation of the 1998 Council Recommendation” (2005, p. 25)

3 Há também outras teses relacionadas em que o entendimento do CADE poderia mudar, por exemplo, a impossibilidade de condenar indivíduos não administradores – tese apoiada pelo Conselheiro Sergio Ravagnani.

4 Uma empresa ou pessoa física que não se qualificou para um acordo de leniência em um caso investigado pelo CADE, mas fornecer informações acerca de um outro cartel sobre o qual o CADE não tenha conhecimento, poderá obter todos os benefícios da leniência em relação à segunda infração e redução de um terço da pena que lhe seria aplicável com relação à primeira infração.

Link para matéria no JOTA.

Imagem: Towfiqu Barbhuiya 

Autores L&S

Andressa Lin Fidelis

Andressa Lin Fidelis

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