Riscos na atuação de auditores em investigações internas de fraudes contábeis


Eu sou Frei Alberigo,
Aquele eu sou das frutas do mau horto,
Que aqui recebo tâmara por figo
[Dante, A Divina Comedia, Inferno, Canto XXXIII, versos 118 a 120]


Diversos casos envolvendo supostas fraudes contábeis ganharam a atenção da mídia e de autoridades brasileiras e estrangeiras nos anos recentes. Dentre as medidas jurídicas de gestão de crise, há as famosas “investigações internas”, cujo objetivo é apurar fatos que possam afetar os interesses das empresas alvo e seus acionistas e permitir a adoção de medidas informadas a respeito de potenciais ilícitos. Investigações internas bem conduzidas têm o condão de mitigar riscos jurídicos, financeiros e reputacionais.

A independência é pilar fundamental de qualquer investigação interna que se pretenda efetiva. Muito se fala na importância da autonomia dos advogados que a conduzem e avaliam os seus resultados. Essa boa prática, no entanto, não se limita à equipe jurídica, devendo ser observada por todos os profissionais contratados no bojo da investigação.

Para assegurar a independência em investigações internas, tem-se considerado criar comitês ad hoc de apuração de resultados, afastar colaboradores da alta direção potencialmente envolvidos e separar a equipe de defesa da pessoa jurídica da equipe responsável pela investigação interna.

Há, no entanto, um tipo de conflito de interesse que não tem recebido a devida atenção pela doutrina, pelo Judiciário e por condutores de investigações: aquele criado em razão da auditoria das demonstrações financeiras a determinado cliente e posterior prestação de serviços de investigação interna ao mesmo cliente. Tais serviços de investigação interna podem abranger o levantamento ou a revisão de documentos e mensagens, chegando no limite à condução das próprias investigações com apresentação de relatório conclusivo.

É o que se passa a discutir.

Conflitos de interesses: as regras profissionais

A atividade de auditores é pautada pela independência, e pelos deveres de adoção de medidas razoáveis para evitar conflitos de interesse e interpretações tendenciosas. A independência contábil compreende tanto a independência de pensamento quanto a aparência de independência.

Mas essa independência pode ser prejudicada por empresa de auditoria que se torna dependente de trabalhos de consultoria de qualquer natureza para seus clientes.

Como consequência, haveria o risco de perda de independência. O que aliás ocorreu nos casos Enron e WorldCom, que resultaram no colapso da empresa de auditoria e consultoria Arthur Andersen. Essa empresa foi acusada de relaxar práticas de auditoria aplicadas a clientes que geravam honorários substanciais de consultoria, o que gerou contencioso e dano reputacional que levaram à sua queda. Foi a essa situação contra a qual lei e regulação reagiram nos Estados Unidos, com reflexos no Brasil.

Conflito de interesses: a proibição da CVM em relação ao mercado de capitais e suas decorrências

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) passou em vista disso a vedar ao auditor independente a prestação de serviços de consultoria que possa caracterizar a perda de sua objetividade e independência, tema a ser julgado conforme as regras do Conselho Federal de Contabilidade (CFC) (Resolução CVM 23/2021, artigo 23, II). Tem-se como exemplos de tais serviços de consultoria aqueles que influenciam ou possam vir a influenciar decisões tomadas pela administração da instituição auditada (Resolução CVM 23, artigo 23, parágrafo único, VII). É o caso de serviços de consultoria prestados em investigações internas envolvendo fraudes, tais como a condução das próprias investigações ou de shadow investigations, isto é, o monitoramento de investigação interna em curso por entidade não relacionada à empresa alvo de investigação

Essa regra em sua literalidade tem vigência apenas para a auditoria de companhias abertas, pois o órgão dela emissor, a CVM, só pode regular o mercado de capitais. Só que normas semelhantes também são previstas para instituições financeiras (Resolução Conselho Monetário Nacional [CMN] 4.910, art. 3º, inciso I); instituições de pagamento e administradoras de consórcio (Resolução do Banco Central do Brasil [BCB] 130, artigo 3º, inciso I); seguradoras, entidades abertas de previdência complementar, de capitalização e resseguradoras (Resolução Conselho Nacional de Seguros Privados [CNSP] 432, artigo 99, I); e entidades fechadas de previdência complementar (Resolução Conselho Nacional de Previdência Complementar [CNPC] 44, artigo 6º).

A multiplicação dessas regras no campo regulatório denota, ainda, haver um princípio geral que permeia o tema. Considerando ser a analogia uma fonte do direito (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, artigo 4º), a violação de tais regras por empresas não reguladas também nos parece infringir princípio geral da boa-fé. Assim, toda e qualquer cumulação de serviços de auditoria e consultoria definidos na Resolução CVM 23 seria problemática.

A proibição da prestação cumulativa de tais serviços está, inclusive, em linha com o entendimento recente do Supremo Tribunal Federal (STF),[1] que determina que a atividade de auditor independente é incompatível com a prestação de consultoria para a mesma empresa auditada.

A extensão subjetiva da regra da CVM

Sem dúvida proibida a prestação de consultoria pelo próprio auditor. Mas, também, segundo o caput do artigo 23 da Resolução CVM 23, por pessoas naturais e jurídicas a ele ligadas, conforme definido nas normas de independência do CFC, em relação às entidades cujo serviço de auditoria contábil esteja a seu cargo.

O CFC determina que pessoas ligadas ou firmas em rede não devem manter relacionamento comercial próximo com cliente de auditoria ou sua administração, a menos que qualquer movimento financeiro seja irrelevante e o relacionamento comercial seja insignificante (NBC PA 400, artigo R520.4).

O CFC adota um conceito extensivo de firma e firmas em rede. Firma pode ser: (i) uma pessoa física ou jurídica que presta serviços de contabilidade; (ii) entidade que a controla; ou (iii) uma entidade com a qual mantenha relação de “controle, administração ou outros meios” (Glossário da NBC PG 100). Para tais efeitos, e de modo tautológico, controle é descrito como exercível por meio de controle, administração ou outros meios.

As firmas em rede, por sua vez, são formadas sempre que firmas e outras entidades (i) dividam lucros ou rateiem custos (ii) tenham os mesmos controladores e administradores; (iii) compartilhem políticas e procedimentos comuns de controle de qualidade; (iv) compartilhem estratégia de negócios; (v) compartilhem o uso de marca comercial em comum; ou (vi) compartilhem parte significativa dos recursos profissionais (NBC PA 400, artigo R400.53). São ocorrências, inclusive, o compartilhamento de procedimentos operacionais, estruturas e principalmente marca, comuns no mercado de auditorias. Presentes essas características, ficariam mesmo empresas independentes impedidas de atuar em investigações internas em favor de empresa auditada por outra entidade da mesma rede.

Passemos, então, aos riscos jurídicos resultantes dessa prática para os violadores.

Riscos relacionados à ausência de independência de auditores

A prestação de serviços por auditores externos sem a observância a regras de independência no âmbito de investigações internas cria riscos adicionais à empresa contratante, aos próprios auditores externos e a firmas relacionadas que eventualmente prestem serviços de consultoria ligadas a investigações, de ordem reputacional e material.

De início e mais importante, constatada a falta de independência nos serviços prestados por auditores que, diretamente ou por entidade de mesma rede, também prestem consultoria ao mesmo cliente, duas consequências se impõem, por ordem de gravidade:

  1. a auditoria de demonstrações financeiras realizada perderia valor e teria de ser refeita, implicando custos e forte abalo reputacional, capaz mesmo de destruir a credibilidade e inviabilizar a continuidade operacional do cliente;[2]
  2. os serviços de consultoria e a investigação consequente perderia credibilidade e eficácia como demonstração de boa fé do cliente e de sua gestão.

Além disso, todas as partes envolvidas (a companhia aberta, seus administradores e os próprios auditores) podem ser responsabilizadas administrativamente.[3] Tem-se como exemplo de sanções cabíveis, a aplicação de advertência, multa, suspensão e até a cassação do exercício profissional.

Já no caso de instituições financeiras, administradoras de consórcio e instituições de pagamento que não sejam companhias abertas, a responsabilidade administrativa decorreria de norma específica, o artigo 3º, inciso XVII da Lei 13.506/2017.

Há também o risco de, tendo os serviços de consultoria sido prestados no âmbito de investigação interna com o envolvimento de autoridades sancionatórias e/ou do poder judiciário (e.g., em casos de acordos de leniência), ser determinado o refazimento da análise contábil, da própria investigação interna em razão da falta de independência na condução das atividades investigativas, ou mesmo cancelado o próprio acordo de leniência. Referida determinação não seria inédita no Brasil uma vez que, em 2017, o juízo criminal autorizou o refazimento de investigação interna de uma empresa do ramo de celulose solicitado pelo Ministério Público Federal do Distrito Federal (MPF-DF), sob o argumento de que a independência das apurações teria sido comprometida.[4]

Por fim, há o risco de as partes envolvidas na investigação interna e prestação de serviços de consultoria à empresa alvo incorrerem no delito de embaraçar investigação, desde que o alvo dela seja organização criminosa (Lei de Organizações Criminosas, artigo 2°, § 1º). Esse delito apenas poderia ser punido em caso de dolo, ainda que eventual, ou seja, havendo intenção de produzir embaraço de investigação a partir de entendimento que se sabe incorreto (Código Penal, artigo 18, I).

A observância a práticas transparentes em investigações internas deve ser regra, o que inclui a sua condução de forma independente. Há proibição definitiva de que companhias abertas, instituições financeiras e de pagamento e administradoras de consórcio contratem para qualquer aspecto da investigação interna os seus auditores ou empresas da mesma rede. Falhar nisso pode gerar riscos relevantes à pessoa jurídica contratante, como a necessidade de refazimento da investigação interna, cancelamento de acordos com o poder público, imprestabilidade da auditoria e da investigação, e, inclusive, prejuízos reputacionais e sanções administrativas, quiçá penais, como demonstramos.

Na citação que inicia este texto, da “Divina comédia”, Dante e seu guia Virgílio encontram Frei Alberigo, que durante a Idade Média italiana fez entrar sicários para matar seus inimigos, usando por senha a chamada das frutas. Agora, era punido com castigo mais severo do que a falta, recebendo tâmara por figo. Justo para ele, talvez, mas os investidores em nossos mercados e instituições não podem receber tâmara por figo. Devem receber exatamente aquilo que compraram, na forma de empresas bem administradas e bem auditadas, sem conflitos de interesse. Eis o tema deste artigo.

Link para artigo no JOTA.

[1] Vide Recurso Extraordinário nº 902.261/SP, julgado em: 22/09/2020. “DIREITO CONSTITUCIONAL. COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS – CVM. LIMITES DO PODER REGULAMENTAR. ATIVIDADE DE AUDITOR INDEPENDENTE. INCOMPATIBILIDADE COM A PRESTAÇÃO DE CONSULTORIA PARA A EMPRESA AUDITADA. CONSTITUCIONALIDADE DOS ARTIGOS 23, INCISO II E PARÁGRAFO ÚNICO, 24, CAPUT E PARÁGRAFO ÚNICO, E 27, CAPUT E PARÁGRAFO ÚNICO, DA INSTRUÇÃO 308/1999, DA CVM. PROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. (…) É indene de dúvidas que há um potencial conflito de interesse quando os trabalhos de consultoria e auditoria são prestados, a um mesmo cliente, pelo mesmo auditor.”.

[2] Segundo o artigo 27, parágrafo único da Resolução CVM 23, constatada a falta de independência do auditor […], o trabalho de auditoria é considerado sem efeito para o atendimento da lei e das normas da Comissão.

[3] Artigos 9º, 11 e 26, § 3º da Lei nº 6.385/1976; artigo 27 da Instrução CVM 23.

[4] Segundo o MPF/DF, o comitê de trabalho formado para a apuração independente dos fatos era composto por investigados, restando claro o conflito de interesses e ausência de independência na condução das atividades. Vide Inquérito Civil nº 1.16.000.000393/2016-10 e Procedimento Administrativo de Acompanhamento nº 1.16.000.001755/2017-62.

Imagem: Stocker

Autores L&S

Eduardo Salomão Neto

Eduardo Salomão Neto

Sócio
Gabriela da Costa Carvalho Forsman

Gabriela da Costa Carvalho Forsman

Advogada

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