Ganhos não realizados e os padrões contábeis brasileiros
Conforme demonstramos em artigo desta newsletter intitulado “Offshores: tributação de lucro não realizado”, as variações positivas de avaliação a valor justo de ativos são ganhos não realizados e não definitivos, de modo que não podem ser tributados pelo Imposto de Renda (IR) antes da realização do ativo (alienação, liquidação, baixa). Neste artigo, apontaremos que, na hipótese de a sociedade não residente apurar seu lucro de acordo com os padrões contábeis brasileiros, as variações positivas ou negativas decorrentes de avaliação a valor justo sequer devem transitar pelo resultado, de modo que não devem impactar o lucro da sociedade.
O art. 5º, § 10, I, da Lei nº 14.754, de 12 de dezembro de 2023, dispõe que o lucro deverá ser apurado conforme o padrão internacional de contabilidade, identificado como sendo o padrão emitido pelo International Financial Reporting Standards (IFRS), ou conforme os padrões contábeis brasileiros. Caso a sociedade esteja localizada em país ou em dependência com tributação favorecida ou seja beneficiária de regime fiscal privilegiado, os padrões contábeis brasileiros serão obrigatórios.
Por sua vez, a Instrução Normativa (IN) da Receita Federal do Brasil (RFB) nº 2.180, de 11 de março de 2024, que regulamenta a Lei nº 14.754/23, dispõe que os padrões contábeis brasileiros corresponderiam ao BR GAAP (Brazilian Generally Accepted Accounting Principles), sigla em inglês que identifica os princípios da contabilidade geralmente aceitos no Brasil. E na forma do item 33 do Perguntas e Respostas sobre a Lei nº 14.754/23, a RFB defende que tanto o BR GAAP quanto o IFRS determinariam, como regra, que os ativos financeiros sejam avaliados a valor justo com contrapartida em resultado, o que impactará o lucro da offshore.
No entanto, os padrões contábeis brasileiros abarcam o BR GAAP, mas não se limitam a ele. A fonte dos padrões contábeis brasileiros é encontrada na Lei das Sociedades Anônimas (LSA), por dar as regras de Direito Contábil. Seu art. 177 prevê que a escrituração da companhia obedecerá (i) aos preceitos da legislação comercial, (ii) aos preceitos da LSA e aos (iii) princípios da contabilidade geralmente aceitos. O BR GAAP é o último destes elementos; é fonte de direito, mas é fonte hierarquicamente inferior à Lei.
O BR GAAP é constituído por princípios contábeis, que se originam de costumes, que são prática geral, reiterada e uniforme em determinada área de atividade humana ou profissão. Cabe ao Conselho Federal de Contabilidade (CFC), ao amparo do art. 6º, alínea ‘f’, do Decreto-lei 9.295, de 27 de maio de 1946, dispor sobre princípios contábeis por meio da edição de Normas Brasileiras de Contabilidade (NBC). As NBC estipulam normas técnicas e profissionais que objetivam assegurar a observância do princípio, mas não são o princípio em si.
Nesse passo, deve-se refletir quais outras regras legais se referem ao tema, passando sobre o Brazilian GAAP e as NBCs que procuram explicá-lo. Especificamente, o art. 183, I, “a”, da LSA, prevê a avaliação a valor justo para aplicações em instrumentos financeiros e em direitos e títulos de créditos, classificados no ativo circulante ou no realizável a longo prazo, destinadas à negociação ou disponíveis para venda. A Lei não define “instrumento financeiro”, mas referido termo foi inserido na LSA pela Lei 11.638, de 28 de dezembro de 2007, que promoveu a convergência das normas contábeis nacionais aos padrões internacionais, de modo que há clara remissão ao conceito contábil de instrumento financeiro, que compreende tanto ativos de renda fixa quanto instrumentos patrimoniais (ações e quotas de sociedades).
Por sua vez, o art. 182, § 3º, da LSA, determina que as contrapartidas de avaliação a valor justo devem ser classificadas como ajustes de avaliação patrimonial (no patrimônio líquido) enquanto não computadas no resultado do exercício em obediência ao regime de competência, nos casos previstos nessa lei ou em normas da Comissão de Valores Mobiliários.
Por fim, o art. 187, § 1º, “a”, da LSA, ao retratar o regime de competência, prevê que devem ser computados no resultado do exercício “as receitas e os rendimentos ganhos no período, independentemente da sua realização em moeda”. Receitas e rendimentos “ganhos” no período são aqueles definitivamente incorporados ao patrimônio da sociedade, e não de forma hipotética e incerta. Pois, claro, se o aumento patrimonial resulta de mera flutuação de cotações de mercado, reversíveis de um dia para outro, claro está que os valores acrescidos não foram ganhos. Afinal, inexiste qualquer título jurídico a sua manutenção.
A LSA determina, assim, que não se computem variações de avaliação a valor justo de ativos em contrapartida a resultado, justamente por serem ganhos não realizados e não definitivos. Ou seja, não configuram lucro tributável antes da realização do ativo.
Portanto, na eventualidade de a sociedade não residente apurar seu lucro conforme os padrões contábeis brasileiros, por opção ou por ser localizada em região com tributação favorecida ou ser beneficiária de regime fiscal privilegiado, as variações positivas ou negativas de avaliação a valor justo de ativos financeiros não deveriam compor seu resultado nem se sujeitar ao IRPF devido no Brasil até a realização do ativo.
Imagem: Stevepb/Pixabay