Incertezas na tributação de vídeos sob demanda

O surgimento do Vídeo sob Demanda (VoD) revolucionou o mercado audiovisual ao redor do mundo. No Brasil não foi diferente e as consequências da rápida expansão do VoD são evidentes, podendo ser notadas, por exemplo, pelos crescentes cancelamentos dos pacotes de canais por assinatura (fenômeno conhecido como cord-cutting), bem como pela drástica diminuição da demanda por tradicionais mídias domésticas em DVD ou Blu-Ray.

Além de acirrar a competição no mercado audiovisual, a expansão do VoD no Brasil expôs deficiências e incertezas na forma de tributação do provimento de conteúdo audiovisual em geral. Para as empresas que fornecem VoD o desafio é ainda maior, em razão da dificuldade de adaptação ao modelo obsoleto de intervenção estatal no mercado audiovisual via tributação. Somam-se a isso outras distorções, como as diferenças de tributação entre os diversos modelos de provimento de conteúdo audiovisual que competem pelos mesmos consumidores, resultando em condições desiguais de concorrência.

Serviços de comunicação como os canais de TV por assinatura, por exemplo, são tributados pelo Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), enquanto outras formas de provimento de conteúdo audiovisual, a exemplo do streaming, estão sujeitas ao Imposto Sobre Serviços (ISS), sendo aplicadas alíquotas distintas.

O primeiro desafio, portanto, consistiu em definir se as soluções de VoD deveriam ser tributadas pelo ICMS ou ISS. Por meio da Lei Complementar nº 157, de 2016, definiu-se que o streaming de conteúdo audiovisual por meio da internet sofreria a incidência do ISS, de arrecadação municipal. Por outro lado, alguns estados como São Paulo editaram normas submetendo ao ICMS o download de conteúdo audiovisual.

Entendemos que a cessão ou licença de uso (consumo) de conteúdo audiovisual via streaming não se enquadra no conceito de “serviço” definido pelo Supremo Tribunal Federal e, portanto, não se sujeita à tributação pelo ISS. De igual modo, o ICMS só é devido nas hipóteses de transferência definitiva do conteúdo audiovisual ao consumidor via download, ou se a atividade configurar prestação de serviço de comunicação, como ocorre com VoD fornecido via canais de TV por assinatura por meio de sua própria infraestrutura.

Reforma tributária que unificasse o ISS e o ICMS em um único Imposto sobre Valor Agregado (IVA) com fato gerador mais abrangente poderia resolver esse problema e nivelar a concorrência entre os provedores de conteúdo audiovisual, colocando-os todos em condição equivalente. Propostas nesse sentido existem e vêm sendo discutidas no Congresso, mas seus resultados são ainda imprevisíveis.

As incertezas quanto à tributação do VoD são ainda maiores no que diz respeito à cobrança da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) sobre a veiculação, produção, licenciamento e distribuição de obras cinematográficas e videofonográficas com fins comerciais (Condecine-Título), bem como sobre pagamentos de valores a produtores, distribuidores ou intermediários no exterior pela exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação a preço fixo (Condecine-Remessa).

Enquanto a Condecine-Remessa é cobrada à alíquota de 11% sobre as receitas decorrentes das obras, a Condecine-Título é cobrada em valores fixos por título ou capítulo de obra disponibilizada, sendo devida uma vez a cada cinco anos. Assim, quanto maior a quantidade de títulos disponibilizados, maior a Condecine-Título a pagar. O valor devido também varia de acordo com o tipo de conteúdo audiovisual comercializado (filmes de longa ou curta metragem, ou obras seriadas produzidas em capítulos ou episódios, por exemplo) e de acordo com o segmento de mercado ao qual o título é destinado (cinema/salas de exibição, televisão aberta, canais de TV por assinatura, vídeo doméstico em qualquer suporte e “outros mercados”).

A Agência Nacional do Cinema (ANCINE), responsável por regulamentar e administrar o recolhimento da Condecine-Título, considera que as soluções de VoD estão sujeitas à contribuição sob o segmento “outros mercados”. Os provedores de VoD entendem de outra forma. Alguns defendem que é ilegal a inclusão do VoD no segmento “outros mercados” e que é indevida a cobrança. Outros entendem que VoD é modalidade de vídeo doméstico, enquadrando-se, portanto, no segmento de “vídeo doméstico, em qualquer suporte”, no qual os títulos são tributados em valores inferiores aos aplicáveis ao segmento de “outros mercados”. A questão segue sem definição e ainda não há registro de precedentes judiciais a respeito.

A arrecadação da Condecine sobre VoD também enfrenta desafios no caso de disponibilização de conteúdo audiovisual diretamente a consumidores locais por empresas estrangeiras sem presença física no Brasil. Isto porque, sob a legislação atual, a Condecine-Título só é devida por detentores de direitos de exploração comercial ou de licenciamento no País. Regras pouco claras permitem ainda alegações no sentido de que pagamentos feitos por consumidores a provedores estrangeiros de VoD não estão sujeitos à Condecine-Remessa, pois os usuários não pagam pela exploração comercial dos títulos. Seja como for, cobrar Condecine individualmente de milhões de usuários parece impraticável e é certamente indesejável.

A legislação da Condecine foi originalmente editada em 2001, quando o VoD ainda era incipiente no Brasil. Alterações poderiam resolver as questões acima e outras igualmente relevantes, como a tributação desigual entre diferentes segmentos do mercado audiovisual. Como o produto da arrecadação da Condecine é utilizado pelo Governo Federal para intervir no mercado audiovisual com o intuito de fomentar a indústria cinematográfica nacional, a Condecine deveria ser o mais neutra possível entre os diferentes segmentos desse mercado e não deveria inibir o desenvolvimento de novos produtos como o VoD nem o ingresso de novos competidores.

A tributação por título é particularmente prejudicial ao VoD, pois sua atratividade depende fortemente do tamanho e variedade do catálogo de títulos. No regime atual, novos entrantes pagam Condecine-Título antes da efetiva exploração comercial dos títulos e independentemente de auferirem receitas, o que tende a induzir provedores de VoD a reduzir seus catálogos. Como resultado, produções independentes e títulos menos populares podem deixar de ser disponibilizados. A burocracia decorrente da necessidade de registrar os títulos na ANCINE também poderia ser evitada ou reduzida se a Condecine deixasse de ser cobrada por título.

Ciente desses problemas, a ANCINE já sugere alternativas à forma de tributação atual. Tributar as receitas, incluindo as de publicidade, é uma das opções e parece ser a de mais simples implantação. No entanto, poderá enfrentar resistência por parte de alguns provedores de VoD, que receiam que os benefícios decorrentes de um modelo de tributação mais isonômico e menos burocrático sejam neutralizados por carga tributária possivelmente mais elevada.

Um sistema híbrido, no qual contribuintes pudessem optar entre recolher a contribuição por título ou sobre a receita auferida também está sendo considerado e poderia funcionar como boa solução intermediária.

Quanto à cobrança da Condecine de provedores estrangeiros de VoD sem presença física no Brasil que oferecem conteúdo diretamente aos consumidores, discute-se a possibilidade de tributação das transações financeiras de pagamento, transferindo a responsabilidade tributária para a instituição financeira que atuar na operação. Essa opção, no entanto, requereria cooperação do Banco Central e cuidadosa integração entre sistemas eletrônicos.

Embora não limitadas à oferta de VoD, as incertezas e deficiências no sistema de tributação impactam negativamente esse segmento tão dinâmico e altamente competitivo, talvez mais do que outros segmentos mais tradicionais, já mais bem adaptados à nossa confusão tributária. Entender a complexidade do sistema tributário brasileiro é necessário e representa importante vantagem competitiva para quem pretenda se manter relevante ou ingressar no mercado audiovisual local enquanto não alcançarmos um ambiente tributário mais coerente e equilibrado.

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Autores L&S

Isabela Schenberg Frascino

Isabela Schenberg Frascino

Sócia
Pedro Araújo Chimelli

Pedro Araújo Chimelli

Consultor

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