Setembro trouxe maior segurança à interpretação dos contratos privados

Rafael Zabaglia 23/10/2019

A insegurança jurídica tem sido preocupação recorrente para empreendedores e investidores no Brasil. Faceta particularmente preocupante do problema mostra-se quando os tribunais desconsideram ou relativizam o conteúdo dos acordos entre particulares por razões de desequilíbrio ou injustiça. As alterações feitas no Código Civil em setembro pela assim chamada “Lei da Liberdade Econômica” (em que pese esse apelido vazio) podem afinal trazer maior segurança.

Até o mês passado, o Código Civil vinha dando aos tribunais margem para aplicar princípios jurídicos abertos duma maneira que mitiga cláusulas contratuais expressas. Isso tem raízes históricas. O antigo Código Civil de 1916 refletia a ideia de que os contratos tinham que ser cumpridos conforme o acordado, a qualquer custo; esta visão formalista levou a iniquidade em casos extremos. Em resposta, o Código Civil de 2002, atualmente em vigor, introduziu o conceito de eticidade nos contratos e estabeleceu, entre outras coisas, que a intenção das partes prevalece sobre o sentido literal do texto, que os contratos devem ser interpretados e cumpridos de acordo com a boa-fé, e que os contratos servem a uma função social.

Essas não são de modo algum regras ruins, porém carecem de especificidade e deram origem a problemas distintos.

Os tribunais por vezes interpretam disposições contratuais concretas, expressas, acordadas entre partes em igualdade de condições à luz daqueles princípios - e o fazem duma forma que neutraliza completamente o teor do contrato. Assim agindo, acabam liberando as partes inadimplentes de suas obrigações, ou permitindo que cumpram suas promessas dum modo que se desvia da letra do contrato. Resultado disso é que riscos são redistribuídos e alocados à parte inocente.

Esse cenário pode estar prestes a ser alterado – talvez drasticamente. Após as alterações feitas mês passado, o Código Civil estabeleceu que os tribunais agora devem expressamente considerar critérios objetivos sobre a interpretação de significado, abrangência e escopo das disposições contratuais estabelecidas entre os particulares.

Exemplificativamente: a cláusula deve ser interpretada em favor da parte que não a redigiu (se esta puder ser identificada); o juiz deve levar em conta o comportamento das partes durante o cumprimento do contrato; as partes podem dispor sobre as regras de interpretação aplicáveis e, se o fizerem, o juiz deve observá-las; o teor do contrato assume precedência e só excepcionalmente o juiz pode revisá-lo e aplicar padrões diferentes; e, ausente prova em contrário, o juiz deve presumir que o contrato foi negociado e celebrado por partes em posição de igualdade e deve respeitar a alocação de riscos acordada.

Não obstante as novas regras ainda precisem ser testadas em casos específicos de relações contratuais às quais é inerente algum grau de desequilíbrio entre as partes (p. ex. contratos de franquia ou alguns tipos de empréstimo), a novidade tem impacto evidente sobre os acordos empresariais complexos e personalizados. O espaço para se desviar do teor do contrato tornou-se menor.

Ironicamente, a história por trás dessa recente mudança legislativa é, por si só, uma parábola sobre insegurança jurídica no Brasil. O Código Civil promulgado em 2002 havia tramitado durante quase 30 anos no Congresso; foi agora modificado a partir duma canetada do Executivo em abril de 2019, com a edição da chamada “MP da Liberdade Econômica”, que trata de diversos outros assuntos relacionados ao ambiente de negócios; um dos requisitos para edição de medidas provisórias é urgência.

O Congresso teve 120 dias para votar se a MP deveria ou não ser convertida em lei, de modo a alterar o Código Civil. No curso desse processo legislativo, várias emendas foram introduzidas (e algumas retiradas) pelos legisladores, resultando na lei de setembro de 2019 – lei essa que, registre-se, acabou levando a alterações ao Código Civil diferentes daquelas contidas na MP.

Certamente, não é um bom presságio para investidores quando o Executivo se sente livre para modificar leis básicas sobre contratos sob o pretexto de “urgência”, ignorando o processo legislativo regular; nem quando o Legislativo, de modo oportunista, termina por adotar alterações diferentes a tais leis, na pressa. Todavia, como dito o resultado final desta vez foi positivo, então os investidores brasileiros e estrangeiros farão melhor em simplesmente celebrar o bom desfecho sem indagar como ele foi alcançado.

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