Veículos elétricos e tributação: a importância de instituir incentivos efetivos

Não há como falar em transição energética para economia de baixo carbono sem abordar o transporte veicular. Dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea)1 indicam que o setor de transportes é responsável por aproximadamente 13% de todas as emissões de CO2 no Brasil e apuração do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA)2 demonstra que, no município de São Paulo, os carros são responsáveis por 72,6% da emissão dos gases causadores do efeito estufa. Dessa forma, qualquer política pública voltada à descarbonização deve incluir os automóveis.

Exemplos disto são as iniciativas internacionais em vigor ou em discussão. Em 2021, o Presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Joe Biden, definiu como meta que 50% de todos os automóveis vendidos nos EUA em 2030 sejam elétricos. Ainda mais ambiciosa, a União Europeia apresentou um pacote de medidas, ainda não aprovadas, que preveem a proibição da comercialização de automóveis a combustão a partir de 2035. Nessa linha, o Brasil também se comprometeu a incentivar a fabricação e a comercialização de veículos elétricos, sem, contudo, definir metas3.

Há alguns anos o Governo Brasileiro tem fomentado a pesquisa e o desenvolvimento de tecnologias voltadas ao aumento da eficiência energética dos veículos automotores e ao desenvolvimento de combustíveis mais limpos. Por meio do Programa Rota 2030, em particular, são disponibilizados alguns benefícios fiscais específicos em relação à dedução de gastos com pesquisa e desenvolvimento (P&D) dos valores devidos a título de IRPJ e CSLL.

Apesar de não ser voltado especificamente à eletrificação4, o Rota 2030 representa instrumento útil ao atingimento da transição energética no setor dos veículos automotores e poderia/deveria ser aprimorado, por exemplo, por meio da criação de compromissos e obrigações voltados à instalação da nova infraestrutura necessária, em especial relacionadas ao carregamento dos veículos elétricos. A instalação de postos de recarga em quantidade e localização adequados é parte essencial da política energética de nações na vanguarda da transição5, uma vez que a aceitação dos veículos elétricos pela população depende de carregamento rápido, disponível e acessível. O uso do programa Rota 2030 (com modificações para aprimoramento) para incentivar a eletrificação traria mais eficiência e agilidade ao processo de transição energética veicular, pois atingiria os grandes nomes do mercado automotivo que já estão habituados à estrutura normativa do programa vigente.

Contudo, além de garantir o desenvolvimento de novas tecnologias em território nacional, é necessário fomentar demanda que justifique os novos investimentos, o que implica tornar os veículos acessíveis aos consumidores.

É verdade que os veículos elétricos têm se popularizado em alguma medida no Brasil: os emplacamentos passaram de 117 em 2012 para quase 35 mil em 20216. Ainda assim, representam apenas uma pequena fração do total de carros vendidos (1,55 milhão em 20217) e um dos principais fatores para tal disparidade é o preço. Os carros elétricos mais baratos custam, em média, o dobro do valor de suas contrapartes a combustão8.

Apesar do movimento internacional e dos compromissos assumidos, ainda falta ao Brasil uma política ampla e eficaz de incentivo à compra de veículos elétricos, em especial no âmbito tributário – que afeta diretamente os preços praticados. Havendo objetivo governamental de garantir a transição energética, não basta aguardar passivamente a popularização dos veículos elétricos. É necessário tomar medidas concretas e eficazes para garantir que esses veículos tornem-se competitivos.

Embora o Governo Federal e os Governos Estaduais já tenham dado passos positivos nesse sentido, é necessário ir além. Análise breve dos principais tributos incidentes sobre veículos elétricos permite observar como, apesar de mudanças recentes, ainda não há um verdadeiro incentivo à compra dos elétricos pela maior parte da população.

  1. Imposto de importação (II): até 2020 era de até 35% do valor do veículo importado, mas, atualmente, na maior parte dos casos, é de 0% a 4%, a depender da eficiência energética do automóvel (há uma alíquota geral de 20% para veículos elétricos, mas essa não se aplica à maior parte dos  casos)9. A alíquota aplicada à maior parte dos automóveis comuns é de 20%, de modo que há claro incentivo à importação dos elétricos. No entanto, tais alíquotas foram definidas por meio de resolução e, portanto, são passíveis de alteração por mero ato do Poder Executivo. Existem propostas legislativas objetivando fixar alíquota zero.
  2. Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI): até 2018, alíquotas eram de até 25% do preço dos carros totalmente elétricos. Normas mais recentes10  reduziram as alíquotas, que, para os híbridos e totalmente elétricos, variam de 5,335% a 16,3%, a depender do peso e, supostamente, da eficiência. Já a alíquota sobre os carros a combustão varia de 5,705% a 20,375%. Embora aparentemente um pouco inferior, na prática, a alíquota sobre os elétricos é a mesma dos veículos a combustão, porque as reduções mais significativas aplicam-se a carros elétricos de luxo, mais pesados e menos acessíveis, de modo que a tributação dos elétricos de entrada permanece equivalente à dos veículos a combustão. Por exemplo, apesar de ser, ao que consta, o carro mais eficiente do mercado e não emitir nenhum gás poluente11, o Renault Kwid elétrico é tributado à mesma alíquota que sua contraparte a combustão, três vezes menos eficiente em termos de descarbonização.
  3. PIS e Cofins: as alíquotas, que somam 11,6%, são iguais para veículos elétricos ou à combustão.
  4. Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS): embora seja um dos impostos mais onerosos ao consumidor final, praticamente não existem incentivos. O Estado de São Paulo, por exemplo, reduziu timidamente, em janeiro de 2021, a alíquota efetiva incidente sobre os veículos elétricos, de 18% para 14,5% – alíquota similar àquela dos veículos a combustão.
  5. Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA): a depender do estado, existem benefícios consideráveis, incluindo isenção total    do imposto sobre veículos elétricos. Distrito Federal, Maranhão, Paraná, Pernambuco, Piauí, Sergipe, Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte concedem isenção total. Rio de Janeiro, Ceará e Mato Grosso do Sul concedem isenções parciais. Em São Paulo, alguns municípios garantem isenções totais ou parciais na parcela do tributo destinada ao respectivo município. Tal tributo, contudo, não afeta diretamente o valor de venda dos carros, embora possa influir na sua atratividade/acessibilidade para potenciais compradores.

Observa-se que a tributação sobre os carros elétricos, que há alguns anos era muito superior, atualmente é bem próxima daquela incidente sobre os veículos a combustão, quando deveria ser drasticamente inferior. Além disso, as maiores reduções aplicam-se a veículos de luxo, normalmente importados, que já eram pesadamente tributados pelo II e IPI e não têm vocação para massificar o uso dos elétricos.

Para os carros de entrada, usualmente fabricados no Brasil e já sujeitos à menor alíquota de IPI aplicável a carros, os efeitos são pouco significativos. As isenções de IPVA, embora atrativas, não reduzem o valor de compra e, consequentemente, não têm impacto direto na ampliação do acesso ao veículo elétrico. Dessa forma, os benefícios fiscais existentes são incapazes de incentivar a maior parte dos consumidores a realizar a troca do veículo a combustão pelo elétrico.

A ausência de uma política fiscal nacional que efetivamente incentive a compra de veículos elétricos impede que os benefícios existentes sejam suficientes para ampliar o acesso do público em geral a esses veículos, inviabilizando a efetiva transição energética no setor.

Reconhecendo a importância da transição, outras nações já criaram benefícios destinados a reduzir direta ou indiretamente o custo desses veículos e que podem ser traduzidos à realidade brasileira. Os EUA, por exemplo, concedem crédito no imposto de renda federal de até US$ 7.500 para aqueles que comprem certos veículos eletrificados12. Na cotação de maio de 2022, são aproximadamente R$ 37.000 que podem ser abatidos diretamente do imposto devido no ano da compra do carro. A Alemanha, a seu tempo, utiliza um fundo especial criado para subsidiar diretamente a compra de veículos elétricos, cobrindo até € 6.000 do valor dos automóveis (aproximadamente R$ 30.000)13.

Provavelmente para evitar as distorções acima citadas, o benefício é maior para os veículos mais baratos (de até € 40.000).

O Reino Unido, além de também subsidiar o custo desses automóveis14, concede benefícios fiscais às empresas que trocam suas frotas pelos elétricos15.

A adoção de políticas similares no Brasil, em conjunto com a manutenção e o aprimoramento dos incentivos já em vigor, representaria uma verdadeira mudança de paradigma no mercado brasileiro dos veículos elétricos.

Há que se considerar também que a descarbonização do setor de transportes não pode depender apenas dos carros elétricos, que não são produtos perfeitos. Além de serem (tal como os carros a combustão) de uso quase individual e portanto ocuparem proporcionalmente mais espaço no trânsito do que veículos de transporte coletivo ou de micromobilidade, também consomem grandes quantidades de minérios na sua fabricação16 e energia no seu uso. Por essa razão, o Estado não deve se limitar ao incentivo aos carros elétricos, mas também buscar soluções limpas voltadas à micromobilidade e ao transporte coletivo.

Algumas medidas promissoras já foram colocadas em prática. No transporte coletivo, por exemplo, os juros cobrados pelo BNDES para financiar a compra de ônibus elétricos e híbridos são inferiores àqueles cobrados nos demais casos17. Mas há muito mais oportunidades a explorar: as bicicletas elétricas ainda são significativamente mais tributadas do que os carros, com alíquotas de II de 18% e IPI de 26%, embora representem solução viável e limpa para substituição dos carros nos deslocamentos urbanos (sobretudo para distâncias menores), com ganhos adicionais de saúde e bem-estar para os usuários (já que costumam usar a energia humana e do motor em conjunto).

Para que se atinja efetiva transição energética no Brasil, será necessário que o governo tenha postura ativa na popularização dos veículos elétricos, por meio de incentivos fiscais verdadeiramente amplos e eficazes que permitam não somente a compra de veículos elétricos a preços acessíveis para um maior número de consumidores, mas também a produção local dos veículos e a instalação da infraestrutura necessária, além de viabilizar soluções limpas para as demais modalidades de transporte. Infelizmente, os incentivos concedidos atualmente de forma descoordenada são insuficientes para atingir esses objetivos e causam distorções que incutem falsa sensação de comprometimento do poder público com a transição energética veicular.

1 Disponível em https://anfavea.com.br/docs/apresentacoes/APRESENTA%c3%87%c3%83O-ANFAVEA-E-BCG.pdf.

2 Disponível em http://emissoes.energiaeambiente.org.br/.

3 Tal compromisso foi apresentado na COP26, em Glasgow, por meio das Diretrizes para uma Estratégia Nacional para Neutralidade Climática.

4 No final de maio de 2022 foi aprovado, em comissão do Senado, projeto de lei que obriga que parte dos benefícios fiscais obtidos com o programa seja destinada à P&D voltada a eletrificação.

5 Vide https://afdc.energy.gov/fuels/electricity_infrastructure.html e https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/1065576/taking-charge-the-electric-vehicle-infrastructure-strategy.pdf.

6 De acordo com dados da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), disponível em http://www.abve.org.br/serie-historica/.

7 Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-01/emplacamentos-em-2021-crescem-105-diz-fenabrave#:~:text=Em%202021%2C%20foram%20comercializadas%201,ao%20mesmo%20m%C3%AAs%20de%202020.

8 O Renault Kwid E-Tech, um dos automóveis elétricos mais baratos à venda no país, é vendido ao preço sugerido de R$142.990, contra R$67.690 da versão à combustão; variação similar ocorre com o Peugeot 208, vendido a R$ 265.990 na versão elétrica e R$ 112.790 na versão à combustão.

9 Conforme Resoluções GECEX n. 272/2021 e 318/2022.

10 Decreto n. 10.979/2022.

11 Fonte: Programa Brasileiro de Etiquetagem Veicular do Inmetro.

12 Vide: https://www.irs.gov/businesses/irc-30d-new-qualified-plug-in-electric-drive-motor-vehicle-credit.

13 Vide: https://www.bundesregierung.de/breg-de/themen/klimaschutz/umweltbonus-1692646.

14 De até £ 1.500 (aproximadamente R$ 9.000).

 15 Vide: https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/709655/ultra-low-emission-vehicles-tax-benefits.pdf.

16 A bateria de carros elétricos necessita de alguns minérios de mineração complexa e poluente, como lítio, níquel e cobalto. Em razão dos processos necessários para separar os subprodutos dos minérios, essa mineração é mais poluente que a do ferro, por exemplo. O carro elétrico precisa ainda dos demais minerais necessários para a fabricação dos carros a combustão, tais como ferro, alumínio, entre outros. Vide https://www.nytimes.com/2021/11/20/world/china-congo-cobalt.html e https://www.nytimes.com/2021/05/06/business/lithium-mining-race.html?action=click&module=RelatedLinks&pgtype=Article.

17 Disponível em: http://www.abve.org.br/incentivo-do-bndes-para-onibus-eletricos/.


Autores L&S

Fernando Hamú Alves

Fernando Hamú Alves

Advogado
Isabela Schenberg Frascino

Isabela Schenberg Frascino

Sócia
Pedro Araújo Chimelli

Pedro Araújo Chimelli

Consultor

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